Pelo segundo mês seguido, o Ministério da Saúde vai disponibilizar menos doses de vacinas contra o novo coronavírus do que o inicialmente previsto em seus cronogramas.
Já lento, o processo de imunização fica ainda mais prejudicado por esse erro de planejamento, exatamente no pior momento da pandemia no Brasil, que atinge números recordes de casos, mortes e ocupação de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) por causa da covid-19.
Em 17 de fevereiro, a área da saúde do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) previa cerca de 35 milhões de doses em março. Já no cronograma apresentado no dia 19 deste mês, a estimativa subiu para pouco mais de 38 milhões.
Porém, o país receberá 27,6 milhões até 31 de março em um cenário mais otimista. Ou seja, 73% do originalmente prometido pelo então ministro Eduardo Pazuello, que deixou a pasta esta semana. Esse número pode ficar ainda menor. Podem ser apenas 24,7 milhões (65% do previsto) caso a Focruz não entregue o planejado. (leia mais abaixo)
No mês de fevereiro, o governo também não entregou a quantidade prometida. E, para abril, já é certo que a previsão também não será cumprida mais uma vez —a Fiocruz indicou que não conseguirá entregar cerca de 12 milhões de doses no mês que vem.
Desde o começo da campanha de imunização até a tarde de sexta-feira (26), o governo federal afirmou ter distribuído 30,7 milhões de doses. O novo o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou nesta semana que sua principal meta é vacinar 1 milhão de pessoas por dia, mas não disse como pretende fazer isso.
Expectativa x Realidade
A principal falha na programação do ministério está relacionada à Covaxin, vacina indiana comercializada no Brasil pela Precisa Medicamentos. O cronograma para março previa 8 milhões de doses. Até o momento, a empresa brasileira não confirma se essa quantidade estará disponível este mês.
“Fizemos a solicitação de licença de importação e estamos atendendo todas as demandas para buscar atender ao cronograma”, diz a Precisa Medicamentos em nota.
Mas, mesmo que chegue, a Covaxin não poderá ser usada agora porque ainda não tem autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) —a agência, inclusive, diz que faltam documentos a respeito do imunizante.
Outro ponto de divergência entre previsão e a realidade é na quantidade de doses do consórcio Covax Facility. A expectativa era que chegassem 3 milhões de doses no mês. Desse total, foi entregue apenas 1 milhão. E não há data para a chegada do restantes.
No caso da vacina de Oxford, produzida pela Fiocruz, há dúvida sobre a data para completar a entrega de 3,9 milhões de doses previstas para março. Até o momento, o laboratório entregou cerca de 1 milhão. Também questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde não prestou esclarecimentos.
O número menor também é causado por falha de comunicação. Segundo o Ministério da Saúde, o Instituto Butantan iria entregar 23,3 milhões de doses da CoronaVac em março. Porém, ao somar as entregar previstas para as próximas segunda (29) e quarta (31), o total será de 22,7 milhões neste mês. O Butantan diz que o ministério considerou para março 600 mil doses que foram entregues em fevereiro.
“Frustração enorme”
O quantitativo previsto não corresponder à realidade “gera uma frustração enorme”, diz Carlos Lula, presidente do Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde) e secretário da Saúde no Maranhão. “Era melhor não ter gerado essa expectativa. A gente não pode trabalhar com expectativa irreal porque a gente tem um planejamento todo feito.”
Não ter confiança no número de doses que estarão efetivamente disponíveis atrapalha desde a estratégia para tentar diminuir os números de casos e mortes até a logística para a entrega dos imunizantes para os municípios, explica o secretário.
“Enviando as doses, em geral, em quantidade muito pequena, a gente tem um gasto enorme para fazer essa logística. Para entregar as doses para todos os municípios, tenho um gasto. Tem município [no Maranhão] que vai receber 20, 30 doses. É um absurdo.”
Para ele, o problema com as previsões é apenas um dos reflexos da conduta do governo federal no combate à pandemia ainda no ano passado. ”
“O problema não é de hoje. O problema é da postura do ministério desde 2020. Quando a gente vai correr agora para tirar o prejuízo, era notório que a gente ia ter problema.”
Carlos Lula, presidente do Conass
Lentidão é perigosa
Todos os ouvidos pela reportagem concordam: é preciso acelerar a vacinação no país. Para Lula, se a imunização continuar “lenta dessa forma e o vírus continuar circulando, isso tudo pode levar a uma situação que é a pior possível, que é surgir uma variante que seja imune à vacinação”. “A gente volta à estaca zero.”
Em manifestações públicas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mudou seu discurso e passou a defender a vacinação, mas tem mentido ao exaltar tudo o que fez na tentativa de garantir a compra de doses.
Por fazer acordos mais recentemente, o Brasil não tem prioridade nas entregas —o que poderia ter acontecido com acertos no ano passado, os quais o governo federal negou. E também porque nem todos os laboratórios estão cumprindo a previsão de entrega.
“A vacinação está um caos por culpa principalmente do presidente, mas também porque nós somos afetados por essa escassez mundial de insumos e de cronogramas que sejam realmente contemplados”, diz Mônica Levi, diretora da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).
Segundo ela, é preciso imunizar ao menos 70% da população para “a vacina dar conta de reduzir a circulação do vírus”. Até 25 de março, 6,65% dos brasileiros já haviam recebido ao menos uma das duas doses dos imunizantes.
Vale fora do papel?
No papel, com acordos mais recentes, o Brasil terá doses suficientes para vacinar toda a população ainda em 2021. “Nós estamos no condicional do ‘se, se, se'”, diz Levi, ao pontuar sobre as promessas de entregas das vacinas da Pfizer e da Johnson & Johnson —laboratórios que já tiveram histórico de atrasos em outros países.
“O problema do Brasil não é vacinar. O problema é da falta de cronograma confiável. Estamos falando de uma campanha de vacinação que não tem vacina.”
Mônica Levi, diretora da SBIm
As incertezas sobre quando se poderá ser vacinado gera agonia na população, acredita o médico Alexandre da Silva, professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí. “Essa oferta sem aquém do que é proposto, gera para quem tem consciência, uma angústia, ‘porque não é minha vez, nunca chega minha vez’.”
Fonte: UOL