Dois anos depois do início da pandemia, o Ministério da Saúde pretende declarar até junho o fim do estado de emergência em saúde pública, instituído no Brasil em 2020 por conta da Covid-19. A pasta trabalha em um levantamento para identificar normas atreladas à vigência da chamada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em diversos órgãos do governo a fim de não prejudicar a gestão pública. Na prática, a medida pode impactar da quantidade de vacinas disponíveis a benefícios trabalhistas, passando por processos de compras públicas.
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Um levantamento preliminar mostra que, somente na área da Saúde, há pelo menos 168 portarias cujos efeitos estão vinculados ao estado de emergência e que seriam invalidadas caso ele fosse finalizado. A pasta já iniciou conversas com interlocutores do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional para construir uma saída do status atual de forma gradual e sem atropelos, tanto do ponto de vista técnico quanto político.
O fim do estado de emergência vem sendo chamado pelo ministro da Saúde Marcelo Queiroga e pelo presidente Jair Bolsonaro, de “rebaixamento” da pandemia (quando uma doença se alastra pelo mundo de forma intensa), para endemia (quando há uma estabilidade no número de casos e mortes). O presidente chegou a anunciar nas suas redes sociais, no último dia 3, que a pasta faria estudos neste sentido “em virtude da melhora do cenário epidemiológico”. Na ocasião, postou uma foto ao lado do ministro. Essa reclassificação, contudo, só pode ser feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
No âmbito interno, a perspectiva é que já sejam reavaliadas, no curto prazo, antes mesmo de uma eventual saída do estado de emergência, algumas regras estabelecidas em função da Covid-19, como restrições de exportações de insumos ligados ao enfrentamento da pandemia, facilitações para importação de medicamentos e regras excepcionais para trânsito nas fronteiras. Por outro lado, experiências que tenham sido eficientes para melhorar a operação das políticas públicas podem ser absorvidas pela administração.
“Vamos trabalhar as flexibilizações que já podem ser feitas e eventualmente, no caso de alterações que foram feitas e estão condicionadas à existência da emergência de saúde pública e que se mostraram experiências interessantes de política pública, a gente avalia a continuidade delas, independentemente da Espin, como eventualmente uma ampliação da aplicação da Telessaúde”, afirma o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, referindo-se à expansão da possibilidade de consultas na área da Saúde de forma não presencial.
Análises de cenários epidemiológicos também estão sendo traçadas para embasar, cientificamente, a saída do estado de emergência. Hoje não existe um parâmetro na hora de declarar o início ou o fim do atual status, ou seja, qual seria o número de casos considerado aceitável. Uma matriz de risco elaborada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, que leva em consideração dados como média móvel de novas infecções e de internações, é um dos referenciais em estudo pela pasta.
“A ideia é fazer isso de forma transitória, nada abrupto, e dialogar com todos. Dialogar com o Congresso, com o Poder Judiciário, com o Poder Executivo, com estados e municípios, para que a gente possa se preparar para esse momento de maiores flexibilizações onde o cenário pandêmico permita”, ressalta Rodrigo Cruz.
Uma saída avaliada por técnicos do ministério é prever, na portaria que extinguir o estado de emergência, gatilhos que possam ser acionados caso haja um aumento nas contaminações pelo novo coronavírus em função de novas variantes, por exemplo.
Outra preocupação é evitar que alguns imunizantes deixem de ser permitidos no País. A autorização emergencial de vacinas, criada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em dezembro de 2020, tem previsão de durar somente durante o estado de emergência em saúde pública. Atualmente, a CoronaVac e a Janssen estão em uso apenas com o aval emergencial. As demais já obtiveram registro definitivo na agência.
A reportagem questionou a Anvisa se o uso dessas vacinas seria suspenso com o fim do estado de emergência, mas a agência não respondeu. Disse apenas que está acompanhando os movimentos mundiais sobre as flexibilizações, bem como o dados do cenário epidemiológico e em diálogo com o Ministério da Saúde.
Normas
As dezenas de leis, portarias ou resoluções atreladas ao estado de emergência tratam de assuntos diversos. Uma norma, por exemplo, sancionada por Bolsonaro no início deste ano, estabelece direitos aos entregadores de aplicativos durante a pandemia, determinando que as empresas paguem ao profissional afastado por Covid-19 uma ajuda financeira durante 15 dias que podem ser prorrogados.
Uma outra seara que sofrerá impacto com o fim da emergência em saúde é a de aquisições por parte do poder público. Os procedimentos de compras de insumos, inclusive com dispensas de licitações, foram simplificados na pandemia, chegando a reduzir pela metade o tempo da assinatura de um contrato, segundo técnicos do governo.
Vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Nésio Trindade opina que é preciso ter cautela para iniciar essa discussão, até pela mensagem de baixo risco da doença que a medida pode passar para a população. Para ele, ainda não há segurança para garantir que não haverá aumento no número de casos nos próximos 120 dias e há discussões mais urgentes como a revacinação de idosos.
“O fim do estado de emergência vem com uma cascata de compreensão da situação da pandemia, o fim de uso das máscaras, a ideia de que a pandemia acabou. É um debate que é muito prejudicial para o contexto da pandemia”, afrima.
O professor de Infectologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fiocruz Julio Croda considera haver hoje um cenário “intermediário” em relação ao futuro da doença. Ele pondera aspectos positivos, como “circulação ampla do vírus associada a uma ampla cobertura vacinal e pouco escape de resposta imune no futuro”, e negativos, como o risco de surgimento de “variantes com velocidade grande”. Mas explica que o futuro da Covid-19 é se tornar uma endemia: “O cenário realístico é o intermediário, em que vai se tornar uma doença endêmica, eventualmente sazonal para grupos específicos de maior risco”.
Secretário-executivo do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Junqueira acredita ser ainda “muito cedo” para tomar essa decisão. Ele ressalta que é preciso avaliar a situação no mundo, tendo em vista a circulação do vírus e suas variantes.
“Ainda temos problemas de cobertura vacinal em boa parte do mundo, embora no Brasil nossa cobertura seja boa. A preocupação é com um novo aumento de casos”, afirma Junqueira.
Fonte: iG