Passaram-se cinquenta anos ! Entre os dias 15 e 17 de agosto daquele ano lendário de 1969, aconteceu um dos mais icônicos festivais de música da história: Woodstock. Em Bethel, nos arredores de Nova York, numa fazendola, o produtor Michael Lang organizou aquilo que imaginava ser uma pequena mostra da música do leste americano. De repente, mais de quinhentas mil pessoas se amontoaram na fazenda, todos jovens, na sua maioria entre 20 e 30 anos, acampados, amontoados em espaços exíguos e sem infraestrutura, sob a inclemência do frio, da lama e da chuva. Moradores das cercanias, de início meio atarantados com a multidão, terminaram por se achegarem, providenciando uma ajuda providencial aos que chegavam aos borbotões, respondendo a um chamado quase que profético, como se ali estivessem em romaria. Viviam-se os gloriosos anos sessenta, onde já tinha eclodido o maio de 1968 em Paris, onde um fortíssimo movimento de contracultura explodia por todos os cantos e poros do mundo, pregando a paz e a liberdade, posicionando-se , veementemente, contra a Guerra do Vietnã, contra os liames da sociedade de consumo que já se prenunciava, contra a medicalização excessiva imposta pela indústria farmacêutica, posicionando-se frontalmente contra o cerceamento da liberdade sexual e da ilicitude do convívio com as drogas e contra a robotização impelida pelas grandes religiões. Hippies circulavam pelas cidades, com seus cabelos e barbas longos, num novo ciclo do Cinismo grego, demonstrando que era preciso erguer as pilastras da civilização em terreno mais harmônico, mais natureba e mais simples. Casais perambulavam nus , faziam amor sem complicações pelos cantos da fazenda, sem grilos, sem exigências maiores, sem necessidade de contratos cartoriais, viajando psicodelicamente na música de Joe Cocker, Joan Baez, Santana, Jimi Hendrix, Jannis Joplin, dos irmãos Gershwin , de Ravi Shankar, Clearence Clearwater, The Who e muitas outras bandas e artistas inesquecíveis.
Escorrido meio século , grão a grão, pela ampulheta do tempo, onde está aquela geração que queria mudar os rumos nada glamorosos do mundo e em que ponto se encontra a civilização sempre tão impermeável às metamorfoses ? O que foi feito do sonho ? The dream is over ? O pragmatismo, aos poucos, pode ter vencido o ideário hippie , o sonho contracultural dos anos 60, mas permanece vivo no nosso imaginário as possibilidades poéticas de Woodstock.
As gerações que se seguiram perderam , em muito, o ímpeto, o impulso revolucionário de construir seu próprio futuro; de moldar um mundo novo sem as deformidades visíveis daquele construído por seus pais e avós. As novas gerações resignam-se em receber um pacote pronto, um kit posto em suas mãos pelos seus ascendentes, um bolo feito pelo confeiteiro , com receita dele , sem que tenham podido escolher os sabores e ingredientes. A história, o script das suas vidas lhes é entregue como uma predestinação. Há um caminho previamente traçado que levará ao paraíso individual, a felicidade será mais felicidade se for curtida com exclusividade. Os hippies que eram taxados de loucos hoje devem ficar confusos ao observar as neuras, os pinéus, os suicídios e as depressões dos seus filhos e netos.
Nick e Bobbi Ercoline eram um jovem casal acampado durante o Festival de Woodstock, em Bethel, há 50 anos. O fotógrafo Burk Uzzle os flagrou juntos, na manhã de domingo, enquanto estavam abraçados e enrolados em um edredom, em meio a milhares de pessoas também acampadas. Eles, involuntariamente, tornaram-se uma parte da história da cultura pop quando, meses depois, aquela imagem seria estampada na capa do álbum triplo com 21 faixas gravadas durante o evento. Nick e Bobbi ainda hoje estão juntos. São testemunhas de um tempo único, quando a juventude ainda carregava consigo a capacidade de sonhar, de usar a história não como um rochedo, mas como uma massa de moldar, de construir seus próprios castelos de areia que, quem sabe, poderiam ter a perenidade que eles terminaram por imprimir na sua própria relação. O mundo ficou mais previsível, mais chato e menos poético depois de Woodstock.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri