“Um morava na Rua do Meio.
O outro no meio da rua.”
Jessier Quirino
Estive em São Paulo recentemente. Sampa une duas qualidades díspares para um interiorano: ótima para se visitar e tenebrosa para se fixar definitivamente. Lá é fácil de perceber o poder da grana que no dizer de Caetano “ergue e destrói coisas belas”. O nordestino, rápido, vê-se imerso numa vida quase de videogame, com as pessoas tendo que vencer, às carreiras, vários obstáculos, no dia a dia, só que no caso do Super Mário Paulistano, infelizmente, os jogadores só têm uma vida. Imergi nos museus, nos Teatros, nos Shows e nas Exposições, como faço anualmente e naquela gastronomia vigorosa e eclética da São Paulo do nosso Tom Zé. Toda grande cidade brasileira é uma Vienamey: uma mistura de Viena com Niamey, a capital da africana Níger. Em geral o centro das grandes capitais faz parte do anverso da moeda, puxando para fabulosa Viena e, na periferia ou na marginália, existe uma imensa Niamey, onde as pessoas sobrevivem basicamente de algum manjar que por acaso caia dos céus. Estas duas extremidades, no entanto, frequentemente se tocam e as faíscas, então, são inevitáveis. De um lado os que passam fome e do outro os que frequentam os spas. Ali os que correm da polícia, do outro lado os que malham nas esteiras das academias. Este ano, mais que nunca, feriu-me os olhos a quantidade de pessoas em situação de rua, no Centro da maior capital brasileira. É gritante e estarrecedor. Parte pela ideia típica do amadorismo dos políticos brasileiros, de dissolver a Cracolândia que é comparável a fazer disseminar um câncer, na tentativa de curá-lo. Mas, principalmente, pela miséria absoluta de grande parte da população brasileira, órfã de governo e de cidadania. Até o ano passado estimava-se em quase 35 mil as pessoas em situação de rua em Sampa, hoje, certamente, este número quase que dobrou. Segundo o IPEA, no Brasil, ano passado, 282 mil pessoas estavam em situação de rua, um aumento de 38%, comparando-se a 2019. Há uma Juazeiro do Norte, hoje, que tem a rua como único teto. Desde 2011, o aumento da população vulnerável foi de 211%, a população brasileira, no período cresceu apenas 11%. Mais da metade deste “rueiros” vive na região Sudeste, a mais rica do Brasil.
Claro que a miséria brasileira tem raízes seculares, mas é gritante e escandalosa a piora no último governo, de completa insensibilidade social. Só no Centro de São Paulo existem mais de 30.000 imóveis vazios. E as queixas do resto da população são enormes: atrapalha o comércio, afasta os turistas, aumentam os assaltos… Ninguém se preocupa com o grave problema humanitário. Ouvindo garçons, taxistas, seguranças, as soluções apontadas não seriam diferentes das apresentadas por Eichmann e Hitler. Interná-los a força e tratá-los à revelia (pergunta-se: e depois de tratados, para onde iriam? Voltam para as ruas, novamente?); invadir as ruas e prendê-los; deportá-los para outros estados; fazer um grande muro e trancá-los lá, num novo Campo de Concentração (certamente, depois, viriam os fornos). Ninguém toca nas raízes profundas do problema, uma desigualdade social escandalosa que perdura por mais de cinco séculos. Recentemente, o ministro Alexandre de Morais deu prazo de cento e vinte dias para o governo federal apresentar um diagnóstico do problema e um Plano Nacional para a População em Situação de Rua. Certamente, agora, virão algumas medidas emergenciais para minorar esse novo holocausto. Uma solução mais duradoura e definitiva, no entanto, para a Vienamey parece longe e inalcançável. Precisaria quebrarem-se todas as correntes e chicotes dos pelourinhos espalhados pelo Brasil que não se esfacelaram com a Lei Áurea, mas apenas se mimetizaram em novas ambições, sujeições e relações de trabalho. Haverá um meio para resolver a equação da rua do meio e do meio da rua?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri