Cristovaldo sempre foi tido como uma pessoa do mais fino trato. Educado, decente, sensato, mais equilibrado do que um equilibrista de circo. Nunca se soube de um desvio na retilínea estrada que traçou para sua vida. Dono de um armarinho, passou toda a vida negociando com linhas, bordados, elásticos, rendas, novelos de lãs, botões, aviamentos. Talvez, por isso — quem sabe? — é que se fez tão retilíneo nas suas atitudes, aprendeu a tricotar a vida, manipulando cuidadosamente a agulha do cotidiano, presa aos delicados fios das relações humanas. E assim foi tocando a vida, no Armarinho Ponto Cruz, desde rapazinho. Mesmo quando caiu a idade e percebeu que o bordado da sua existência já começava a desfazer-se, puxado o fio pela mão do tempo, preferiu ir ficando na loja, agora já tocada mais pelos filhos. Uma forma de passar as horas e enganar a morte que, segundo ele, quando o procurasse em casa, não o encontraria.
Depois dos oitenta e cinco, ainda mantinha o velho Cristo, como era carinhosamente chamado, uma vitalidade invejável. Parecia uma Timbaúba de brejo. A família notou apenas uma discreta alteração no comportamento. Ficara muito mais franco e sincero. Talvez, vendo a estrada mais curta à frente, tivesse resolvido não gastar mais vela com defunto ruim. Mantinha-se educado, como sempre, mas já não tinha papas na língua, o freio de mão ficara definitivamente avariado. Até pensaram os filhos que se tratava de algum sintoma prematuro de demência, mas consultado pelo Neuro, este afastou a possibilidade de Cristo está saltando de marcha, ao menos naquele instante. Nas conversas com familiares, passou a revelar segredos cabeludos da família. Aqueles guardados a sete chaves geração após geração.
— “Vovô vivia maritalmente com a cozinheira da casa, Guadalupe e, inclusive Maricota, filha dela, saiu da braguilha de vovô… “ Tia Mariquinha, que era morcego de igreja, como vocês sabem, tinha um xodó de sacristia com o Padre Belarmino”.
Na morte de uma das irmãs do velho Cristovaldo ele consolando a filha dela, disse : “Sua mãe, minha filha, era boa demais, caridosa, amiga de todos, mas tinha um defeito danado: era fofoqueira pra mulesta. Não deve ter ido pro céu direto, não, precisa de pagar uma franquia: deve quarar pelo menos uns dez anos no purgatório…”
Aquela sinceridade súbita deixou os filhos em desespero. Nem percebiam que infância e velhice são extremidades que se tocam e o velho Cristo apenas retornava à franqueza típica das crianças, ainda não contaminadas pela hipocrisia que é a cola final das relações humanas.
Semana passada, o filho, Juarez, procurou o pai para dar uma daquelas notícias que, com o passar dos anos, vão ficando cada vez mais frequentes. A esposa de Feliciano, seu irmão, batera as botas. Coisa assim, como diria Vinicius, de repente, não mais que de repente. Juarez constrangido mostrou sua preocupação com o tio, agora viúvo e idoso, como reagiria à falta da companheira. O velho Cristo abriu a caixa de ferramentas:
— Ju , meu filho, essa notícia tem um lado bom, apesar de falar em morte. Nunca existiu nessa mundo uma mulher mais chata do que Eleonora. Pior do que um porre de Mazile com tira gosto de doce de Gergelim. Para Felim, aquilo foi um descarrego. Deve estar procurando quem foi o bendito do juiz que assinou seu alvará se soltura.
Juarez, agoniado com a possibilidade do vazamento da conversa, saiu agoniado e pediu ao pai, pelo amor do outro Cristo, para nunca mais repetir aquela “arisia”. À tarde ligou para o pai para dar informações sobre o velório, torcendo para que ele não inventasse de comparecer.
— Alô papai! Tudo bem?
Do outro lado um silêncio sepulcral.
— É para avisar que o velório de tia Leo vai ser hoje a partir faz 17h e o enterro amanhã às 10h. O médico acha que é melhor o senhor não comparecer. Eu aviso à família!
— Ah, meu filho! Que alívio! Graças ao bom Deus! Pensei que você tinha ligado para dar uma notícia pior. Que a triste da Eleonora tinha ressuscitado! Ainda bem! Ave!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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