“Constitui, pois, a luta contra a fome, concebida em termos objetivos, o único caminho para a sobrevivência de nossa civilização, ameaçada em sua substância vital por seus próprios excessos, pelos abusos do poder econômico, por sua orgulhosa cegueira – numa palavra, por seu egocentrismo político,sua superada visão ptolomaica do mundo.”
Josué de Castro (1966)
Josué de Castro nos deixou há quase cinquenta anos. Morreu triste e isolado, em Paris, exilado pela Ditadura Militar de 1964. De origem humilde, mulato, formou-se em Medicina no final dos anos 20 e sonhou enveredar pela psiquiatria. Mas a vida, como o Capibaribe da sua infância, tem suas próprias cheias e marolas e Josué interessou-se pela Nutrição. Contratado por uma fábrica, no Recife, descobriu rapidamente que a maior doença que lhe chegava para tratar, estava longe do seu raio de ação: chamava-se Fome. Tentou explicar isso aos seus patrões e terminou exonerado sumariamente. Josué aprofundou seus estudos relativos à Desnutrição no Nordeste e depois no mundo. Contou com estudos do Dr. Nelson Chaves, médico também pernambucano, que , em estudos, demonstrou uma relação causal entre a fome e a diminuição da inteligência em crianças. Em livros como Geografia da Fome (1946), Geopolítica da Fome (1951), Sete Palmos de Terra e um Caixão (1965), Josué denunciou um morticínio programado da população mais vulnerável que dissimulava suas causas na proliferação de filhos, na superpopulação, esquecendo intencionalmente as reais causas políticas e sociais do holocausto. Castro se tornou, rapidamente, uma referência mundial no combate à fome, assumindo funções como presidente do Conselho Executivo da FAO e embaixador brasileiro junto às Nações Unidas. Premiadíssimo, chegou a ser indicado por três vezes ao Nobel. Elegeu-se ainda deputado federal por Pernambuco, em dois mandatos, até a Ditadura Militar quando teve seus direitos políticos cassados e partiu para um doloroso exílio na Europa. Um romance de Juarez, “Homens e Caranguejos”, sobre os trabalhadores dos mangues do Recife inspirou Chico Science, nos anos 90, a criar obras antológicas como : “Rios, Pontes e Overdrives”, “Da Lama ao Caos”, “Manguetown”.
Juarez, nos últimos tempos, parecia esquecido, um mero resquício de um período sombrio no Brasil que parecia ter ficado fossilizado em obras como “O Quinze”, “Vidas Secas”, “Bagaceira”. Mas o Brasil, como o crustáceo de Chico e de Juarez, gosta da lama e anda para trás. A pandemia nos trouxe, além do outro genocídio também estudado e planejado, o retorno das imagens degradantes que imaginávamos ter permanecido apenas no quadro “Os Retirantes “ de Portinari.
Até gourmetizaram a fome, agora tem o nome pomposo de Insegurança Alimentar. 116 milhões de brasileiros, segundo dados de 2020, vivem nessa situação, metade dos lares no nosso país, não têm garantida a sobrevivência nutricional mínima. E esse número já vinha num crescente preocupante. Em 2013 o número de famílias em insegurança alimentar era de 23% , entre 2017-2018 saltou para 37%. A pandemia apenas pôs a pá de cal no paciente que já vinha no respirador há alguns anos.
E as medidas que temos tomado para mexer na mola propulsora desse outro genocídio são patéticas: armar a população, prescrever cloroquina, auxílio emergencial de miséria. Parte da população tenta resolver solidariamente a chaga, a outra dá comida envenenada ao povo, incendeia moradores de rua.
O Brasil, como o caranguejo do mangue, retorna ao seu habitat natural: a lama e à nossa marcha sempre ré. Voltamos a ser os degustadores de calango e a sonhar, como Baleia, com um mundo cheio de preás gordos e enormes.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri