O velho Chico Pederneiras era o incréu empedernido de Matozinho. A poeira e os pedregulhos da estrada engrossaram seu cangote e o deixaram sempre com uma purga detrás da orelha. Tinha um olhar crítico e enviesado para todas as notícias e informações que chegavam com tarja de certeza absoluta, com carimbo de veracidade incontestável. Chico aprendera no meio da rua que era preciso colocar descontos nas histórias, do mesmo jeito que acontecia no mercadinho da vila e no caixa do banco. Principalmente em casos de Santidade, Brabeza e Riqueza. Não engolia nem os dogmas bíblicos, lançados com línguas de fogo e ameaçadoramente pelos crentes e beatos de Matozinho.
— Se o Supremo Criador do universo escolheu essa rafaméia como porta voz, a gente vê logo que a coisa não pode ir para frente!
Quando os mais ortodoxos proibiam, montados na cangalha do livro sagrado, o uso de bebidas, Chico usava imediatamente o argumento das Bodas de Caná e da transformação da água em vinho.
— Se fosse pecado, cambada de besta, Jesus tinha quebrado era os potes e jogado no mato as tripas assadas do tira-gosto. E tomou as providências, para a alegria da cambada toda, a pedido de Nossa Senhora que sabe da precisão do povo da Galiléia!
A incredulidade de Pederneiras também se estendia para os profetas de chuva de Matozinho. Aqueles cientistas que começam a mirar os sinais da natureza a fim de adivinhar a força do inverno do ano vindouro. Nas reuniões que aconteciam em agosto, na praça da matriz, os mais importantes profetas faziam as previsões do inverno, Pederneiras estava sempre presente se contrapondo não ao que era previsto mas à metodologia empregada para chegar à conclusão .
— O inverno do próximo ano vai ser bom, dizia do seu lado, Totonho dos Búzios. Olhei pro céu ontem e a lua pendeu!
— Isso não dá garantia de nada, não! Atacava de lá Pederneiras. Em 1958, a lua pendeu tanto que nós tivemos que escorar para ela não cair no chão e foi seco como língua de papagaio!
— O próximo ano vai ser seco, previu de um lado Tica do Olho D´água, uma das mais requisitadas profetas da região.
— Por que a senhora chegou a essa conclusão, D. Tica?
— As rolinhas cachechas fizeram ninhos nos riachos do rio Paranaporã! Sabem que não vai chover, senão, não teriam feito, né?
Chico, incrédulo, atacava de lá:
— D. Tica e a senhora vai por cabeça de rola, é? Cuidado, viu? Joana de Zé Vintém foi acreditar numa bicha dessas, teve menino na semana passada!
Nestes dias, nas rodinhas da praça, rolou a conversa de que um tal de mercado ficou nervoso porque o novo presidente eleito, que teve mais de noventa por cento dos votos em Matozinho, prometeu ajudar os pobres. É que tinha gente passando necessidade, gente comendo mucunã e palma assada pra ver se não partia dessa para melhor. E o tal do mercado andava nervoso, dando piti, com a Bolsa dando prejuízo e um tal de dólar subindo mais do que fogo de artifício em quermesse de novembro. Muita gente estava preocupada na cidade com aqueles altos e baixos que saiam na televisão. Pederneiras, diante da aflição dos matozenses, os tranquilizou:
— Meu povo, deixe de ser abestado! Rico é quem se preocupa com esse tal de Mercado, pobre só deve ficar de olho é no supermercado. Essa tal de Bolsa é falsa que só fojo de preá! Parece mulher com TPM! Basta uma fofoca ela que ela sobe e desce como pixite em noite de São João! Alguém aqui conhece esse tal de Mercado? Quando vocês tavam passando fome, na Seca do ano passado, ele veio aqui e perguntou do que vocês precisavam? Quando a bexiga preta tomou conta de Matozinho, Seu Mercado chegou de ambulância trazendo remédio e vacina? Quando Quinco Cirino foi preso porque ofendeu Risalvinha de Mané Victor, o Dr. Mercado chegou com o alvará de soltura? Não? Pois seu Mercado, tu tá nervosinho, é? Pegue tua bolsinha e teu dólar, dobre bem direitinho e use como supositório! Tá nervosinho? Nós não somos chá de camomila, não! E nem comprimido de diazepam! Vá pra baixa da égua!
E olhando diretamente para a televisão, onde Pederneiras acredita que reside Seu Mercado:
— Perdeu, Mané! Não amola! Melou-se? Vá limpar o fiofó com folha de cansanção!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri