“Viva o Brasil
Onde o ano inteiro
É primeiro de abril.”
Millôr Fernandes
Quem portasse um mínimo de discernimento, rapidamente, mataria a charada antes do seu final. Bastava olhar a trajetória da família Bolsonaro na política, que se estendia, então, já há mais de vinte anos, para entender que tudo era a crônica de uma tragédia anunciada. E aí embarcamos no trem fantasma, numa viagem de quatro anos: a cada esquina um monstro diferente. O preço do ingresso foi altíssimo: mais de setecentas mil mortes pela Covid, descrédito diplomático internacional jamais visto, corrupção desenfreada, ameaça real à democracia, disseminação de armas de fogo junto à população, pregação continuada de ódio em nome de Deus.
Se no holocausto previsível, o capitão carreou um terço da população como um novo Jim Jones e, usando todos artifícios espúrios, quase consegue a reeleição, há, no entanto, um aspecto da catástrofe que me parecia muito mais improvável. Expulso um dia das Forças Armadas por indisciplina, o ex-presidente convenceu o Exército a segui-lo cegamente no seu voo rumo ao desastre. Permitiram acampamento de golpistas junto aos quartéis; fizeram vista grossa à tentativa de golpe de 08 de janeiro. Inimaginável presenciar um general, cargo mais alto na hierarquia, envolver-se na tentativa de vender e comprar o produto de um furto aos cofres públicos. Coisa que pensávamos ser destinada apenas a muambeiros e contrabandistas de somenos importância. Testemunhar o ex-assessor da presidência, Mauro Cid, fraudar carteiras de vacinação e vender, em viagem oficial, presentes pertencentes à União, parecia-nos filme de ficção científica. O Tenente-Coronel Mauro foi, segundo consta, um dos mais brilhantes alunos da AMAN. Como é possível ter aceitado uma missão tão rasteira? Que pensar dos outros colegas da Academia menos graduados? O Exército, no seu depoimento à CPI, permitiu que Mauro se apresentasse fardado, ou seja: abraçou a causa como sua e fez com que todos os desdobramentos, a partir daí, viessem manchados de Verde Oliva. O General Heleno, tão contundente, disse em junho de 2019 que um presidente desonesto deve pegar prisão perpétua, que é um deboche para com a sociedade. Continua valendo sua assertiva? E militares desonestos, funcionários públicos, pagos com nossos impostos, que pena deve lhes ser atribuída? Esse, certamente, não é o Exército de Caxias e Barroso e que, estudantes, aprendemos a admirar nos bancos de escola.
Hannah Arendt concluiu que Eichmann, um dos responsáveis pela chacina dos judeus nos Campos de Extermínio, era apenas um burocrata cumpridor de ordens. Isso, claro, não os isenta de culpa. Se queremos um país limpo, é preciso punir os mandantes e seus ajudantes de ordem. Quanto maior a graduação, maior a culpa. É inconcebível que enquanto milhares moram na rua, milhares em insegurança alimentar, crianças prejudicadas definitivamente em suas vidas por conta de desnutrição, vidas e famílias despedaçadas por mera incúria governamental; é inconcebível que uma elite política e econômica predatória, esteja, impunemente, dançando em bacanais e dividindo o butim. Que país é esse?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri










