Alunos da Escola de Medicina da Universidade de Santo Amaro (UNISA), no interior de São Paulo, em fins de março e início de abril deste ano, invadiram uma quadra onde estava acontecendo um jogo de Voleibol feminino. Entraram com um desfile inusitado: despidos e promovendo uma masturbação coletiva. Os vídeos do punhetaço só vazaram pelas redes sociais esta semana, causando uma avalanche de comentários por vezes irreverentes, a maior parte deles atordoados numa onda de críticas e protestos. O caso da UNISA, infelizmente, não é uma exceção. Recentemente episódios iguais de obscenidade coletiva aconteceram com alunos da Santa Casa de SP e da São Camilo. Em Nova Iguaçu os alunos de Medicina, em jogos estudantis, confrontaram as outras torcidas com um grito de guerra profundamente discriminatório: “Ei! Eu sou playboy, não tenho culpa se seu pai é Motoboy”. E nós, pasmos, temos uma só interrogação: o que diabos ainda pode acontecer, nestes tempos de esfacelamento de todas as barreiras da intimidade?
Claro que muitos observadores podem apontar para as incongruências típicas da idade dos envolvidos, adolescentes aí transpondo a segunda década de vida. Muitos lembrarão, imediatamente, para os reflexos destes tempos em que a exposição maciça da vida íntima passou a ser perfeitamente normal e até necessária. Modelos fazem vazar intencionalmente fotos e vídeos pornôs; a troca de “nudes” entre namorados e paqueras virou uma regra (passou a substituir as cartas de amor de antigamente). Os jornais e folhetins se alimentam dessas notícias diárias: “Fulana com biquíni curtíssimo na praia”, “A cantora sicrana, com decote cavadíssimo, mostrou demais”. Hotéis, motéis, casas de aluguel pelo Airbnb, banheiros públicos, provadores de roupas em lojas chiques, frequentemente, são denunciados por uso de câmeras e filmagens escondidas. Há um agravante, no ato perpetrado pelos alunos da UNISA da Santa Casa e da São Camilo. São todos estudantes do curso de Medicina. Todos em formação para exercer uma atividade que exige humanismo, respeito, empatia e sigilo absoluto sobre todas as etapas do tratamento, qualidades essas totalmente díspares da atual escala de valores, num mundo já sem fronteiras de qualquer espécie. Daqui mais alguns semestres farão um juramento impossível de cumprir: RESPEITAR a autonomia e a dignidade do seu paciente; GUARDAR o máximo respeito pela vida humana; NÃO PERMITIR que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre o seu dever e seu paciente; RESPEITAR os segredos que lhe forem confiados, mesmo após a morte do paciente; NÃO USAR os seus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça. E, como se vê, o mais difícil de todos: GUARDAR respeito e gratidão aos seus mestres, colegas e alunos pelo que lhes é devido.
Notícias recentes dão conta de que a UNISA expulsou sete alunos e investiga outros. A PM está investigando os atos obscenos. Estas medidas todas estão sujeitas a reviravoltas jurídicas e é provável que os alunos terminem seus cursos antes de um julgamento definitivo. Ficam no entanto perguntas no ar: se o principal remédio manipulado pelo médico é a confiança, como farão para tratar eficazmente seus pacientes? Se não têm apreço os futuros médicos nem por seus pares, que desvelo terão para os pobres que lhe procurem? Se não conseguem respeitar nem a própria intimidade, que farão com a dos que lhe forem confiados?
Os alunos da UNISA não se despiram sozinhos, deixaram nua também a Arte Médica: já fica impossível diferenciar o homem do jaleco branco do ator pornô. Não é a nudez que é pornográfica mas o vilipêndio de uma Arte meticulosamente cuidada, com sacros cuidados de sacerdotisa, por mais de vinte e seis séculos.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri