A carta foi descoberta em uma greta, na parede de uma casa antiga de Toledo na Espanha. O proprietário atual da velha mansão se dispusera a fazer uma reforma. Por trás de uma das vigas, deu-se com o tesouro, envolto em um canudinho e atado comum já puído barbante. Junto uma espiga de milho que deve ter ajudado a introduzir o canudo nas profundidades do muro. Havia sido ali colocada, cuidadosamente, como uma relíquia que se quer preservada. Como se a descoberta inoportuna pusesse em desequilíbrio a estabilidade de dinastias e estados. A restauração careceu de cuidados arqueológicos. O documento ameaçava desintegrar-se ao simples toque das mãos. Para surpresa de todos, a cartinha não carregava consigo segredos de estado, estratégias militares, conspirações palacianas. Tratava-se de uma carta de amor.
As linhas haviam sido escritas, em letra artística, com uma pluma de pássaro: nada mais adequado para palavras de amor! Fluidez, leveza, horizontes infinitos de passarinho. Nela, um apaixonado Dom Alfonso de Vargas y Montes dirigia-se à sua querida Doña Maria de Sierra, com a aflição dos amantes, em frases como : “É por vossa mercê que me ardo de amores…” e “nasci para servir a vossa mercê e não para mandar”. Agradecia por alguns favores recebidos e demonstrava, claramente, que o amor se fazia correspondido, pois D. Alfonso elogiava, cortesmente, a letrinha da amada em correspondências anteriores. Citava ainda duas outras pessoas que, certamente, deviam conhecer a relação secreta: “ Pepita, quando te beijar, te dará dois beijos, um por mim e outro por Don Juan”. Terminava a missiva de forma esperançosa : “Por haver escrito com pressa, não explico melhor meu afetuoso amor por vossa mercê. Para manhã, sendo Deus servido, espero resposta”. Datava D. Alfonso sua correspondência: “29 de Outubro de 1700”.
Tinham se passado mais de trezentos anos desde que o nosso apaixonado e fervoroso Vargas y Montes encaminhou aquelas bem traçadas linhas à sua amada. Quem seriam D. Alfonso e D. Maria de Sierra? Qual o fim dessa história? Pesquisadores tentaram identificar o casal de enamorados , mas mostrou-se impossível o projeto. Na época, não havia registro nenhum de mulheres e nem participação delas em levantamentos censitários. Dom Vargas y Montes também não se localizou. Descobriu-se, apenas, que a atual vivenda onde a relíquia foi descoberta fazia parte de um antigo seminário e aventou-se a possibilidade de a amada de D. Afonso ser uma religiosa, talvez enclausurada com o único fito de ser afastada de um pretendente de origem plebeia ou inadequado aos olhos da família Sierra.
O leitor pode até concluir, como Álvaro de Campos, que “Todas as cartas de amor são ridículas”, independentemente da cronologia de quando se as grafaram. Talvez, no entanto, mais grotescas e ridículas sejam as forças que se antepõem seguidamente ao exercício natural do amor em suas mais diversas formas. A paixão de D. Afonso e Doña Maria terminou corroída pela inexorabilidade do tempo, como todas as coisas neste mundo, sujeitas à ferrugem e ao cupim das horas. Se os beijos do nosso galante escritor aconteceram apenas pela intersecção de Papita ou um dia chegaram à esperada realidade, não se sabe. Apenas temos a certeza que duraram o infinitesimal momento em que aconteceram. Se o amor carrega consigo essa efemeridade inevitável, a cartinha de trezentos anos prova, por outro lado, que o sentimento que tangeu D. Afonso e D. Maria são eternos na sua essência. Hoje, com os celulares e os e-mails, já não possuem a perenidade de registro que Vargas y Montes um dia imprimiu. Mas, no íntimo, mantém aquela cola básica que se faz a força motriz da humanidade e que um dia redundou na degustação dos frutos da árvore do bem e do mal e na expulsão dos jardins do éden.
O que faz a Terra girar desde sempre continua sendo a esperança que imantou D. Vargas y Montes: a de que, para amanhã, sendo Deus servido, uma resposta há de chegar.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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