“O grande inimigo da verdade é, muito frequentemente,
não a mentira (deliberada, controvertida e desonesta),
mas sim o mito – persistente, persuasivo, e irrealista.”
John Fitzgerald Kennedy
Todas as coisas neste mundo têm um valor real, palpável e mensurável por diferentes sistemas métricos e instrumentos de precisão. E todas também carregam consigo um valor simbólico, bem mais difícil de aferir, bem mais fluido e que evoca regiões mais nebulosas do nosso imaginário. O valor simbólico é bem mais diversificado e foge da percepção do objeto em si, estendendo-se desde o simples campo identitário de grupos buscando seu reconhecimento e direitos pessoais e sociais; movimentos de organizações sociais, de religiões e facções políticas, de povos e nações e até de pautas universais como a pomba que representa a paz. E muitas e muitas vezes o valor simbólico é bem mais preponderante do que o valor real. Assim, para um russo que chegue ao Brasil, a imagem de Nossa Senhora Aparecida é apenas um pedaço de pau. Para um índio isolado na Amazônia um crucifixo nada representa de importante. Este valor simbólico tem a capacidade de unir pessoas como uma camisa rubro-negra num campeonato de futebol ou um hino, uma bandeira na disputa diplomáticas entre os países. O Crucifixo, a imagem de uma santa, o terno de um time, uma bandeira de pano ou uma música extrapolam em muito os valores dos simples materiais que as compõem. A criação de um Símbolo é uma espécie de hierofanização de um objeto, um tipo de sacralização de um utensílio. De repente, um simples dente preso a um colar de couro passa a ser um amuleto com poderes extraordinários. Um punhado de pipocas fazem a limpeza de um corpo, uma água que foi ungida passa a ter força curativa.
Essa força simbólica foi rapidamente sequestrada pelo Capital. O mercado se apropriou da sua força através do marketing, das marcas e do símbolo de status agregado. As grifes famosas são exemplo disso, uma espécie de sacralização dos itens de consumo. Quem usa a caneta Montblanc, a bolsa Louis Vuitton, o vestido Dolce & Gabanna sente-se como se envergasse a capa de um super-herói. Pagam, por isso, não o preço real, mas o valor simbólico do que adquiriram. E, claro, para que o valor simbólico se institua na Casa de Câmbio da sociedade é necessário que um acordo tácito se estabeleça entre seus membros, sempre impulsionado pelas campanhas publicitárias.
A força simbólica é tão poderosa que tem a capacidade de unir as pessoas, como no sentimento de Nação, de Transcendência, nas disputas políticas e esportivas. Carrega, também, uma força desagregadora de mesma intensidade e em sentido oposto, basta olhar os embates de torcidas organizadas, as guerras e os conflitos religiosos.
O mais importante lembrar é que cada um de nós leva consigo esta duplicidade de valores. Na vida pública, então, esse entendimento é essencial. Um prefeito, um senador, um governador ou presidente não é apenas o indivíduo em si, José ou Antônio de Tal. Ele agrega consigo um valor simbólico que extrapola em muito aquele simples exclusivo e individual. A população que os elegeu espera deles bem mais do que cobrariam de um simples mortal, esperam pureza de deuses e superpoderes de Batman. O governador do Turquersquistão, Pedro de Miró, como todo ser humano, tem o direito de beber, de se exceder, de ter uma vida devassa, ter vícios variados. Já o governador está totalmente impedido de ter quaisquer deformidades. Primeiro porque estará pondo por terra toda a expectativa daqueles que o elegeram e, depois, porque estará incentivando, do alto dos seus superpoderes ,a que toda a população se meta com vícios, com crimes, com excessos. Os políticos têm de entender que, eleitos, carregam consigo o poder real e o poder simbólico que são unos e indissociáveis de suas vidas. Pedro de Miró fuma, bebe, dá umas bolas e empreende suas escapadelas na vida privada, problemas que são seus e de sua família; o governador do Turquersquistão é abstêmio, não fumante, não adicto, fidelíssimo e precisa ser cobrado por essas qualidades por todos os que governa.
Elisabeth II partiu ontem. Alguém conseguiria imaginar a soberana britânica, em praça pública, contando a seus súditos suas proezas de alcova ou amores escusos fora do matrimônio? No Brasil, na comemoração do Bicentenário da Independência, o presidente de plantão, que se diz evangélico, pede à plateia, em solenidade oficial, para puxar um coro de “Imbrochável!”, em homenagem a suas pretensas habilidades viris, tendo ao lado a primeira dama. Imagino os pais em casa tentando responder aos filhos pequenos sobre o significado do palavrão e os pastores nos cultos debulhando para os fiéis esse versículo não bíblico. Talvez o problema seja justamente esse. O Brasil tem apenas um valor real, já não possui nenhum valor simbólico. Neste ponto estamos perfeitamente brochados.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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