Chamava-se Francisco Pereira, autodidata, escrevia e lia com desenvoltura, era muito bom em álgebra simples, mestre das quatro operações, detinha noções de trigonometria muito melhores que as minhas. Mas quis entrar para a escola logo que se aposentou aos sessenta e cinco anos. Ali, aprendeu os conceitos das classes de palavras embora as empregasse com eficiência, o sujeito sintático não fez sentido para ele, já que sujeito era um termo pejorativo de seu tempo, explicava o seu entendimento na prática: “me respeite, sujeito!”, ralhava com os filhos diante de uma contestação de qualquer um. Nosso pai era o rei da ironia, mesmo ignorando o conceito.
Certa vez, eu estudava para o vestibular, e como trabalhava de seis da manhã às catorze horas, chegava em casa às quinze, pegava o livro e ia para o quarto de meus pais, lugar mais tranquilo da casa. Lá, começava a estudar, mas logo sucumbia ao cansaço e acabava por dormir. Meu pai chegava do trabalho após as 17 horas e quando chegava perguntava por mim à minha mãe: “Chiquinha, cadê Francinaldo?” — tratava a minha mãe carinhosamente por Chiquinha. E minha mãe respondia, inocentemente: “tá em nosso quarto estudando!”. Meu pai se dirigiu ao quarto e diante da cena saiu com esta: “meu filho, para de estudar esse horário, se não você não consegue estudar de noite!”. Nunca me esqueci dessa sua fala, do humor, do sarcasmo, da ironia. Tratava-se de um humorista nato.
De outra vez, meu irmão Cicero, adepto do rock`roll, especialmente do heavy metal, escutava uma fita do Iron Maiden em nosso quarto. Cicim balançava a cabeça naquele movimento típico do ritual dos metaleiros, meu pai abre a porta, aliás, a cortina — na época nosso quarto não tinha porta e a privacidade ficava na proteção de uma cortina. Papai olhou aquele garoto de 17 anos balançando a cabeça em ritmo alucinante, como lobó na velocidade cinco. Fecha a cortina, dirige-se à minha mãe e diz: “Chiquinha, esse menino nosso deve tá apaixonado!”, e abre um sorriso de quem se sabe irônico.
Nosso pai era um homem sensato e sábio, ensinou-nos o valor do trabalho levando-nos ao seu. Na maioria dos meses do ano, ele era pedreiro e nós, seus auxiliares, numa gradação descendente que durante muito tempo partiu do mais velho até o mais novo, e à medida que íamos nos desenvolvendo buscávamos nosso rumo, os mais velhos César, Deca, Carlinhos e Cicinho engrossaram a fileira da migração às terras do Sudeste. Os mais novos: eu, Junior e Janio ficamos por aqui e buscamos outras áreas de atuação.
Na época da quadra chuvosa, papai inventava de plantar roça de milho, feijão, arroz, fava, e nessa empreitada íamos todos, inclusive, Selma e Cecilia, minhas irmãs. Verdadeira força tarefa que ia da broca à colheita. Nesse processo, aproveitava nossas demonstrações de cansaço com o cabo da enxada apoiada no sovaco como suporte de descanso, Cicim era mestre nisso. Papai nos olhava e dizia: “Estudem, a caneta pesa menos que uma enxada!”. Nenhum livro de autoajuda ou coaching apresenta estratégia tão eficaz. Nunca me esquecerei desses seus conselhos.
A vida é injusta. Nosso mestre só gozou onze anos após a aposentadoria, buscou nesse tempo, com o parco dinheiro de sua aposentadoria e da de mamãe fazer viagens às capitais do Nordeste, digamos que aproveitou na medida que a condição financeira permitiu. Nessa época senti meu pai mais jovem, ainda mais risonho, feliz. Essa fase durou pouco, e nos últimos três anos de sua existência terrena lutou contra uma patologia, possivelmente consequência do estilo de vida de quem precisa trabalhar arduamente e não encontra tempo para cuidar da saúde.
Há dias em que me olho no espelho e vejo o rosto de papai refletido em minha face. Lembro de sua alegria, de seus conselhos, de seus sermões, de sua amizade, de seu amor à mamãe, aos filhos e filhas, aos netos. Enfim, chego à conclusão de que há muito o que melhorar em mim. Também sou responsável para que Dias melhores venham.
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri










