Paraisópolis é a segunda maior favela de São Paulo. Como é tão frequente no Brasil, fica contígua ao Morumbi, um dos mais chiques bairros da capital. São exíguos os limites, por aqui, entre o inferno e o paraíso. As extremidades da extrema miséria e opulência suprema se tocam. Morando em casas apertadas, acolhendo, em geral, várias gerações de uma mesma família, o nome Paraisópolis até parece uma ironia, como se algum humorista tivesse-lhe pespegado esse nome esdrúxulo para a risada da plateia. Em tempos de pandemia, Paraisópolis perfaz a isca ideal para a propagação da Covid. Grandes articulações comunitárias, no entanto, desenvolveram uma profunda mobilização e, mesmo com todas as dificuldades de acesso aos serviços de Saúde, o bairro tem apresentado níveis de contaminação bem abaixo da média paulistana. Há presidentes vigiando, rua por rua, casos suspeitos e voluntários distribuindo cestas básicas nas suas vielas mais escondidas.
Paraisópolis ficou conhecida, nacionalmente, em dezembro do ano passado, quando, num baile funk, a polícia encurralou centenas de participantes, levando à chacina de nove adolescentes. A favela, como regra geral, tem poucas possibilidades de lazer. Uma biblioteca, casas de shows ,como a Casa da Juliana e o Baile DZ7, onde aconteceu o massacre de dezembro. Todos esse empreendedorismo desenvolvido pela própria comunidade de mais de cem mil habitantes, com 80% da população de migrantes nordestinos.
Dados do IBGE (2019) mostram que mais de 30% dos paulistanos não frequentam espaços de lazer e culturais, por conta da distância. Há mais de dez anos, a comunidade lutava por um que pudesse minorar esse sufoco. Desde 2013, por fim, iniciou-se a construção de um parque de quase 70.000 metros quadrados, que tem previsão de término para outubro próximo. Surgiu, então, um problema inusitado, mas perfeitamente esperado no centenário apartheid brasileiro. Incomodados com a proximidade, condomínios de luxo do Morumbi enviaram carta, com abaixo assinado, solicitando a construção de um muro de três metros para proibir o acesso de moradores do bairro pobre para o bairro rico. Nada mais sintomático e simbólico que esta reivindicação.
É que os muros já existem. Eles estão em volta das grandes mansões como as do Morumbi. E, invisivelmente, eles proíbem que os menos afortunados tenham livre acesso aos serviços de saúde, à justiça, aos espaços culturais, à escola, à terra, à moradia, à segurança, ao emprego e à dignidade mínima de viver. A história do Brasil pode ser resumida na construção reiterada e contínua de muralhas, cercas e paredes sociais. As capitanias hereditárias foram apenas se fragmentando, com o passar dos anos, mas continuam presentes no imaginário do país , com os novos donatários erigindo as novas amuradas.
A Prefeitura de São Paulo negou-se a acatar o projeto do renascido muro da vergonha. O Morumbi, o verdadeiro Paraisópolis, não percebe que não existem muros altos o suficiente para mantê-lo feliz, seguro e imune, se do outro lado ruge e urge o Infernópolis. Mais dia, menos dia, as extremidades fronteiriças se tocam em curto e faíscam. A felicidade plena é sempre um bem comunitário, o desabrochar da rosa meu sorriso não tem nenhum sentido e é até ofensivo num jardim de lágrimas.
As muralhas visíveis e concretas são bem mais fáceis de se demolirem e delas se erguerem pontes. O grande desafio são as paredes ocultas, dissimuladas e impalpáveis, fantasmas que sobressaltam nossos sonhos de nação, nesse pesadelo de mais de quinhentos anos.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri