No princípio, a Feira existia em função do desenvolvimento e aprimoramento da pecuária e agricultura. Os galpões e currais se abarrotavam de aves, zebus, ovinos e caprinos, num berreiro sem fim que parecia berçário de maternidade. Negociavam-se produtos agrários e plantéis de raças variáveis e até então desconhecidas. Os bancos, interessados também no negócio, rápido chegaram junto, como parceiros, intermediando as transações e catando e peneirando o lucro nas suas bateias. Ao derredor da Feira se foram postando barracas de palha, como uma rudimentar praça de alimentação. Com o fluxo de pessoas, aumentando a cada ano, era preciso alimentar os vaqueiros, os agricultores e os potenciais fregueses da feirinha.
Espontaneamente, surgiu a pergunta silente: e à noite, transcorrido o dia de trabalho e de negociatas, não seria premente uma diversãozinha? Ninguém é de ferro! E aí foram surgindo os arremedos de bares e de botecos, bem na periferia. Mantinham distância regulamentar, como se temessem quebrar o ar solene da festa. A cachaça, naturalmente, exigiu trilha sonora e começaram a trinar as sanfonas, os pandeiros, os zabumbas e os triângulos que foram se multiplicando e poderiam até formar uma orquestra, se não houvesse muitos maestros e um repertório díspare e eclético: samba, coco, xaxado, marchinha e xote. Sob o encanto da música e do aguardente, veio a dança e levantaram-se latadas e o forró comeu solto nas noites cratenses de julho. A festa, aos poucos, transformou-se de agropecuária em, também, festiva, dançante e musical. E a música e a fanfarra começaram a invadir as barracas mais chiques e o picadeiro principal da festinha, aquele dedicado, inicialmente, apenas à exposição dos melhores plantéis de cada raça. O lúdico, como sempre, se multiplica fácil e um dia puxou o fole Gonzagão no picadeiro central. Depois até Trio Elétrico animou as noites que fechavam os árduos sete dias da Exposição.
A música, como sempre acontece, criou marra, cresceu e foi preciso até fazer um puxadinho para o mais chique clube cratense. Esticando a noite e a festa, a sociedade cratense ia para o Tênis Clube e a farra varava madrugada adentro. Era uma luta contra o tempo! Como era impossível esticar os dias, tinha-se a possibilidade de ampliar, com a noite, a festa que só durava sete dias, aqueles mesmos que o Criador usou no Gênesis, para a criação do universo. Transferida a festança para o puxadinho, a música e a dança continuavam presentes e vivas no parque, apenas a sociedade encontrara um jeitinho de separar os bacanas do clube dos esfarrapados das barraquinhas periféricas.
Com o tempo, o objetivo primeiro da Exposição se foi obnubilando pelo caráter festivo. A Festa virou um megaevento, tomou de assalto toda a região por uma semana, quebrou todas as fronteiras geográficas e o pandeiro, a sanfona e o triângulo se viram assolados por uma praga midiática de ‘sertanojos’ com sotaque do Country e forrozeiros insulsos e Isoporizados. Shows milionários pra boi dormir, aliás, pra boi ficar a noite toda de olho grelado.
Estes dias também se foram se fazendo um momento de encontro e reencontro de várias gerações de cratenses que aqui retornam, com ar saudosista, órfãos de uma antiga bem-aventurança, como se perguntassem em que lugarzinho deixaram escondidos aqueles raios de simples felicidade, onde a alegria brotava espontânea, como a água nas levadas dos pés de serra.
A agropecuária mixou, a música regional sufocou. O que restou, afinal? Existe vida para além dos acordes multimilionários da apoteótica Expocrato de hoje?
Aquela primal festa da periferia da Exposição foi, pouco a pouco, empurrada, ladeira abaixo, para a proximidade dos currais que abrigam os animais. Ali mantinham sempre uma estrutura rudimentar, sem barracas estruturadas e padronizadas, como as da área nobre , em volta do picadeiro. Recebeu, depreciativamente, o nome de “Infernim”. A sociedade sempre a acusou de abrigar a ralé da festa, o povinho, os descamisados, os cachaceiros e os namoros despudorados e proibidos. Hoje, o “Infernim”, pasmem vocês, virou Cult. Poetas, intelectuais, estudantes, universitários, jovens fizeram do “Infernim” o seu paraíso. Ali é possível ouvir ainda a música de raiz, os preços são convidativos, os petiscos mais caririenses. E é possível — veja que coisa incrível — até conversar.
Aldous Huxley perguntava: “E se esse mundo for apenas o inferno de um outro planeta?” Na vida, se a gente reparar direito, alegria e tristeza, amor e ódio, saúde e doença são limítrofes e não têm fronteiras bem definidas. O céu e inferno são o anverso e reverso de uma mesma medalha. O inferno para nós cratenses não nos atormenta, o “Infernim” arrancou de nós o medo. Como no Jogo de Amarelinha, as frias noites de julho mostraram que é possível saltar os dez números a partir do inferno, jogar a pedrinha do sonho no numeral desejado e alcançar, sem burocracias, o Céu desejado. Aprendemos, com as noites de julho, que entre o céu e o inferno a fronteira é tênue e que há mais alegria, música, leveza e verdade do outro lado dos insípidos Jardins do Éden.
Por J. Flávio Vieira. Médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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