“Os meus dias de ontem caminham comigo.
Eles mantêm o passo, são os rostos cinzentos
que espreitam por cima do meu ombro.”
William Golding
O Ceará viveu, na sua história, episódios de cintilações que iluminaram seus caminhos. Com a prematura libertação dos escravos, relampeou na nossa estrada e até acrescentamos o sobrenome Luz ao nosso estado. Em fins do Século XIX, veio um novo luzir nas terras alencarinas: “A Padaria Espiritual”, um movimento cultural pré-modernista que se anteciparia, em quase trinta anos, a nossa Semana de Arte Moderna. Nos anos setenta, uma outra cintilação nos nossos horizontes: “O Pessoal do Ceará” inundava o Brasil com uma maneira poética e brejeira de interpretar o mundo. Da nossa pequena aldeia, como diria Pessoa, conseguíamos depreender as complexidades de um tempo e as incongruências do universo à nossa volta. Alguns anos adiante, adentrando os anos 80, como um suspiro fundo em meio a asfixia da Ditadura Militar, lampejaria o Movimento Massafeira, uma ampliação do Pessoal do Ceará, com novos talentos, novas melodias, novas ideias.
Esses relampejos do final do Século XX, no entanto, foram pouco a pouco ofuscados, pela indústria fonográfica, a quem nunca interessou qualidade e gênio. Sempre entendeu a coisa como um negócio e, com estratégias de marketing similares às empregadas na venda de mariolas ou sabonetes, forjaram tendências, criaram desejos e aspirações, sempre de olho na máquina registradora. Sabiam da facilidade que teriam em criar ídolos, hits, no povaréu a quem se negou sempre o sagrado direito da Educação. Com a explosão das redes mundiais de computadores, nas décadas seguintes, com seus algoritmos impiedosos e secretos, intensificaram-se as possibilidades dos cordões das marionetes. Ortega Y Gasset, hoje, substituiria, rapidamente, seu axioma filosófico: “Eu sou eu e minhas circunstâncias” por “Eu sou eu e meus algoritmos”. Agora, basta ligar o rádio, a TV, o notebook, as plataformas de streaming para se ter uma clara ideia do absurdo monopólio de algumas modalidades musicais: O “Forropôr” (Forró de Isopor), o Breganejo, o Funk, o Piseiro, o Pagode Estilizado. Os incontáveis outros ritmos brasileiros que enchem de orgulho a nossa terra são ouvidos, secretamente, apenas em guetos. É preciso compreender que, em nosso estado, nos últimos quarenta anos, muitas gerações de talentos foram simplesmente sacrificadas e asfixiadas. Muitos desistiram, buscaram outros caminhos e alguns mais resilientes vão sobrevivendo a pão e água. Mesmo os gigantes do Pessoal do Ceará, como Belchior, Ednardo e Fagner ficaram totalmente fora dos holofotes.
Esta semana, tivemos aqui no Cariri, um movimento que busca acender uma nova fagulha e aponta para a possibilidade de um novo resplandecer em céus de chumbo. O jornalista e compositor Dalwton Moura reuniu vários artistas da geração de 70, como Rodger Rogério, Calé Alencar, Rogério Franco, Edmar Gonçalves e tantos outros, com uma nova geração de músicos e compositores (o próprio Dalwton, Davi Duarte, Theresa Raquel) no Show “Futuro e Memória 2”. Fizeram apresentações em Crato, Juazeiro, Nova Olinda, unindo-se a artistas caririenses de várias gerações como Abidoral Jamacaru, Luciano Brayner, Luiz Fidelis, Jocean , Tâmara Lacerda. Promoveram bate-papos e conversas , tentando traças metas e novas veredas em campo tão minado.
Este reagrupamento das hostes aparentemente vencidas e derrotadas, com os novos combatentes anteriormente dispersos, tem a batuta e a visão do jornalista e produtor Dawlton Moura. Ele tem a clara percepção que não há a possibilidade de um futuro promissor sem a memória. O edifício que construímos hoje, por mais monumental que possa ser, só será possível pelos alicerces e a argamassa sólidos edificados por gerações pretéritas. Para mim, foi emocionante ouvir novamente o grito potente e rasgado de Rodger, do alto de um píncaro de mais de sete décadas e a voz grave e personalíssima de Theresa Raquel ainda perfumada pelas rosas juvenis. Eles me falam de continuidade, de futuro, como se o canto de um fosse o eco do outro. Os meus dias de ontem, percebi, caminham comigo, e meus passos são cadenciados por rostos, aparentemente cinzentos, que espreitam por cima dos meus ombros e que olham para adiante, bem para adiante.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri