“Os cientistas dizem que somos feitos
de átomos, mas um passarinho
me diz que somos feitos de histórias.”
Eduardo Galeano
Olhem para o céu estrelado à noite! As unidades astronômicas justificam esse adjetivo. Correndo na velocidade estonteante da luz, precisaríamos de cem mil anos para chegar à borda da nossa Via Láctea. E existem bilhões de outras espalhadas pelo universo! Em contraponto, a vida de cada um de nós tem uma ínfima duração. Somos um mero piscar de olhos na insone e imensa noite do cosmos. Do pó ao pó, separa-nos apenas uma mera lufada de vento. A única possibilidade de alongarmos a nossa existência é torná-la intensa, mas há sempre o perigo de, se aumentarmos o brilho da nossa lamparina, esvazie-se mais rápido o querosene que nos alimenta o pavio. Somos, assim, seres fadados ao esquecimento. Quando a preamar engolir os nossos castelos de areia, levantados à margem da praia, tudo voltará à placidez de sempre: o firmamento continuará azul, o movimento cíclico das ondas manterá seu curso imutável e a areia manter-se-á límpida e intocada sem lembrar que um dia a escavamos. A nossa escultura permanecerá como uma mera lembrança, também fúlgida e fugaz, no coração das poucas testemunhas que tiveram o privilégio de ver nossos castelos, esculpidos na areia, no breve espaço entre uma e outra maré. Só.
O esquecimento pleno e total é a única certeza que carregamos no nosso embornal nessa breve viagem. Nossa trajetória permanecerá viva, com sorte, por mais duas ou três gerações. Aos poucos, aqueles que testemunharam nossas fortificações na areia, também serão tragados pelos outros dilúvios e aluviões do tempo e, por fim, não restará um mero resquício fóssil da nossa passagem pelo planeta. A partir daí, seremos, no máximo, uma foto perdida em algum álbum, um nome opaco, um galho seco, em alguma árvore genealógica.
A nossa improvável perenidade, mesmo que transitória e efêmera, depende da Memória, essa substância também volátil e etérea e que alguns privilegiados, companheiros da mesma peregrinação terrestre, carregam consigo como um fogo sagrado. Observadores contumazes do fluxo cotidiano das relações humanas, catalogadores de fatos, amplificadores de estripulias e potocas, essas figuras contam a história íntima da nossa tribo, aquelas que vão bem além dos fatos heroicos e épicos, e adentram o varejo das existências: no picaresco, no hilário, no irreverente. Eles narram o lado B da nossa saga, sem o glamour afetado, sem o ficcional forjado. Os personagens apresentam-se nas suas fraquezas, nas suas incongruências, nos seus vícios, com aquelas tintas menos coloridas e brilhantes que todos possuem nas suas aquarelas. É que na geometria humana não existem triângulos equiláteros.
Essa semana que passou, o Crato perdeu dois desses imprescindíveis guardiões da nossa memória afetiva. Assis Landim e Almério Carvalho impregnaram-se, durante toda a vida, dos feitos de incontáveis personagens. Com memória privilegiada, inventariaram, classificaram e arrolaram o dia a dia de muitas gerações de cratenses. Foram os Homeros da nossa Ilíada. Enquanto os livros detinham-se no épico, nas grandes epopeias de figuras influentes e poderosas, Assis e Almério voltaram-se para os bastidores, narrando o lado oficioso e hilário da cidade de Frei Carlos. Demonstravam, claramente, que , talvez, a nobreza, a grandeza estivessem mais na face mais oculta da vila, em protagonistas aparentemente desconhecidos e que não emprestavam seus nomes às ruas e logradouros públicos.
O Crato fica mais triste e mais pobre sem Almério e Assis. Perdemos nossos cronistas das miudezas e minudências e esvai-se, com eles, um pouco da alma da cidade. Lutaram, bravamente, contra a impermanência e o esquecimento. Que o Crato retribua-lhes com a mesma substância que eles cultivaram por toda vida: a Memória.
Por J. Flávio Vieira é médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri