Liguei há pouco para um amigo que, como eu, entrou no grupo dos ‘setentões’. Lembrei-lhe de que a inevitabilidade da sucessão dos anos termina por nos tirar, inclusive, a angústia da estrada que vai mais e mais se estreitando à nossa frente. Os que tiveram suas crises existenciais nos cinquenta e sessenta, a partir daí, tiram de letra essas frescurites etárias. Talvez porque comecem já a ser computadas como vitórias. Aos que têm medo de envelhecer resta apenas uma opção: morrer jovem!
Claro que a ‘setentite’, que é quase uma doença, traz consigo os achaques de carro velho. Os rolamentos gripam, a ignição já não pega no arranque, as velas sujam, a pintura, então, perde o brilho e o veículo muitas vezes começa a saltar de marcha. Mas que jeito, né? Aumentam as visitas às oficinas, mas ninguém quer ir definitivamente para o ferro velho! Por outro lado, como tudo nesta vida, há também outras facilidades. Os filhos estão crescidos, os netos mandam na gente (não é nossa responsabilidade educá-los) e vamos levando menos bagagem, em geral, na travessia. E, claro, temos que ter vida própria, dentro das limitações físicas que a idade nos impõe. É preciso preencher os dias e as horas com aquelas atividades prazerosas que a correria da profissão nos tolheu: ler bons livros, viajar, escutar músicas inesquecíveis, pintar, escrever, compor, esculpir, namorar. E até trabalhar um pouco, mas como laborterapia, com o juízo de entender que já não teremos a força e o vigor de outrora. Aquela pabulice do velho que diz não se trocar por um menino de quinze anos é mera retórica. O negócio nunca é fechado porque o vovô não tem como pagar o preço exigido pelo rapazinho na hora de fechar o contrato, com a pergunta inevitável: “o senhor vai me voltar quanto”?
Um grande desafio é compreender que o mundo ao nosso redor gira em torno da juventude. Somos sempre um estorvo, uma espécie de entrave à progressão das moendas. No fundo, o idoso é visto como um ladrão da previdência social, um parasita que nada tem a contribuir com a roda da vida. Nossas horas de voo, nossa experiência valem pouco como moeda de troca.
Mas é preciso seguir a viagem, mesmo sabendo-a imprevisível e em desfiladeiro. Nem adianta olhar muito para trás para ver a trilha percorrida e as curvas e derrapadas que poderiam ter sido evitadas. O caminho está sempre à frente e a estrada é sempre contramão, voltando. Pode-se olhar rapidamente pelo retrovisor, mas sempre com o cuidado para não perder a visão da rodagem, agora carroçável, que se estende a se perder de vista. Com bagagem mais leve, é engatar ponto morto e descer na banguela. No final, nunca se sabe onde está escondido, nos espera sempre o precipício. Que tudo valha a pena: pelo dito e não dito, pelo feito ou refugado, pelo voo desajeitado e hesitante do pelicano que nunca sabia bem se queria plainar ou colher o peixinho que buliçoso flutuava entre os recifes de corais.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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