“E ainda que distribuísse toda a minha fortuna
para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo
para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.”
Coríntios 13:3
A imagem se repetiu incontáveis vezes país afora. A técnica de enfermagem fingiu aplicar a vacina em uma idosa. apenas, sorrateiramente, não comprimiu o êmbolo e guardou a dose, possivelmente, para alguém da sua família. Sequer pesou as consequências da sua ação, quando, deliberadamente, entregava a mãe, a avó, a querida tia de tantos, aos leões da Covid, na imensa arena da pandemia nacional. Sem as câmaras dos smartphones, aquela tragédia, e tantas outras registradas pontualmente no Brasil, teriam escapado da publicidade e as consequências fariam apenas parte da estatística do genocídio atribuído ao vírus. E é de se imaginar que muitas e muitas outras similares conseguiram seu intento, sem um flagrante delito, afinal o país e não só a maldade humana têm dimensões continentais.
Políticos e agentes públicos, acompanhados de familiares muitas vezes, furaram a fila da vacinação, quebrando os protocolos de prioridade estabelecidos pelos estados e municípios, num país em que falta não só o imunizante, mas também um Ministério da Saúde. E, neste item específico de tramoias, fomos seguidos por inúmeras outras nações, independentemente do seu grau civilizatório. Passavam — pasmem vocês — um ar de bom exemplo, de desprendimento e confiança, no incentivo às campanhas.
Em São Paulo, a prefeitura da maior cidade do país colocou espículas abaixo dos viadutos para impedir que moradores de rua ali se abrigassem. E já tinham reiteradamente expulsado moradores da chamada Cracolândia, uma tentativa vã e higienizadora de a prefeitura colocar para debaixo do tapete suas chagas sociais. Várias cidades do Sul do Brasil apuseram arpões embaixo de marquises e bancos de praça com o deliberado propósito de impedir o acolhimento dos sem teto e mendigos.
Repetiu-se, quase que milimetricamente, nos últimos anos, o extermínio de sindicalistas, de sem-terra, de líderes comunitários e de movimentos populares Brasil a fora. Incêndios misteriosos e nunca explicados tomaram de assalto mocambos e favelas, tantas e tantas vezes com incontáveis e anônimas vítimas. Rápidas manchetes dos noticiários da noite.
No início da pandemia, afloraram movimentos de solidariedade com os mais desfavorecidos, com a distribuição de víveres e produtos de limpeza. Em São Paulo, alguém, nunca identificado, entregou comida envenenada a moradores de rua, levando à morte de dois esfarrapados, órfãos de pais e de país. Nem era de se estranhar, antes já tinham ateado fogo em vários moradores de rua, numa espécie de Pastoral da Cremação In Vivo.
Em Manaus, na segunda onda da Pandemia, embora avisados com antecedência, os governos estadual e federal deixaram faltar oxigênio na cidade, levando a que centenas de pacientes perecessem asfixiados, muitos deles crianças pequeninas internas em UTI´s Neonatais. Hitler, ao menos, teve que gastar com o Zyklon B!
Todos os responsáveis por imensuráveis tragédias acreditam que estão perfeitamente cumprindo seu papel. Lutando por um mais puro, limpo e higiênico. Estão apenas jogando o lixo para dentro da lixeira. Abraçam seus filhos à noite e dormem, com os anjinhos celestes, o sono dos justos. Sonham com o país ideal, sem a pobreza e a miséria que estão ajudando a erradicar. Afinal — não esqueçam! — o Brasil é o país mais cristão do mundo!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri