Para os mais atentos a pandemia, não é apenas um negócio de saúde instalado nas rachaduras da índole humana. Ela vai muito além disso. Pela primeira vez na história pós-moderna o mundo está sozinho em casa, diante do espelho, recolhido entre paredes, exilado de si mesmo, distante da vitória. Está mergulhado no fim da festa, envolto em uma rotina de descortinamento, o véu encarquilhado encolheu e agora mostra a outra face desconstruída, aquela que revela o supremo sabotador, sem truques, sem disfarces, de boca aberta, expelindo uma retórica dolorosamente destrutiva e incriminadora, ao mesmo tempo em que busca a inocência tóxica dos heróis.
O tempo não é de ilusões, isso é História crua, sem o penteado macabro da mídia, sem as vestes afetadas da informação. O peso maior desse momento não é o número de mortos, muito menos a terrível capacidade desordenadora da morte. A condição tétrica da miséria dos desvalidos causa uma insônia eterna entre os humanizados, com seus corpos mortos postos entre os corpos vivos, até transformar a esperança na pílula paralisante da banalização. Mas essa não é a dor maior, embora seja profunda por várias vidas adiante. O que foi dado ao ser construtor do tecido social, foi uma oportunidade única de ver o sabotador que existe em cada um, inclusive em sua forma mais sofisticada, quando se olha para o outro e se vê nele e não se responsabiliza por ele.
Mais do que nunca o brasileiro tem essa oportunidade de olhar ao redor e reconhecer o que nunca quis reconhecer ao longo da História. O apequenamento das posturas públicas é o mesmo apequenamento das atitudes privadas, esse é o trabalho incessante das verdades brasileiras aditivadas pelas mentiras brasileiras. O inconsciente coletivo da sabotagem se estabelece quando a permissividade se instaura e no cenário nacional pode tudo e tudo pode ser esquecido imediatamente. Até mesmo os crimes mais hediondos podem ser descartados sem a menor possibilidade de arrependimento. O maior triunfo até agora, nos últimos dias do começo do fim, é a mentira ser respeitada e descaradamente ser reproduzida com a rapidez da multiplicação em um ninho de ratos.
Bolsonaro mente feito um verme no ventre da podridão. Paulo Guedes mente, manipula dados, inventa teorias, faz trapaças feito um delinquente. A Procuradoria Geral da República é a maior mentira da democracia brasileira. Chefiada agora por um senhor sexagenário que não se importa em entrar para a História como um crápula que acobertou mentiras criminosas, depois de ter construído toda uma carreira jurídica em nome de Deus. Augusto Aras é a mentira envergonhada, é aquela que conta o dinheiro sorrateiramente no banheiro. Os alicerces do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal foram fundados em mentiras sólidas. De mãos dadas, como irmãos gêmeos de um filme de terror, legalizam a precarização da existência social brasileira, assaltando direitos, solapando oportunidades, terceirizando o sofrimento, alimentando a mentira das reformas com pedaços de brasileiros triturados.
Sabotar é a maior especialidade contemporânea. Bolsonaro é um sabotador escolado, veio para legitimar a índole pervertida de boa parte da população brasileira, educada na roubalheira, na vantagem escusa, vitaminada no racismo colonial, adubada em suas próprias fezes, como um sistema calculado de exclusão do outro, para que tudo flua em um esgoto estreito, como uma fábrica de migalhas para o outro. Bolsonaro se autopromoveu de sabotador ideológico para sabotador macabro. Empossou o sabotador de almas. Deliberadamente funesto. Não basta desmontar as instituições que garantem a evolução e os direitos humanos. O obscurantismo bolsonarista é muito mais doentio do que o exercício pleno do fascismo. Agora ele quer sucatear o céu e o inferno, promovendo a mortandade de brasileiros e brasileiras, fundando a versão de bolso do extermínio.
Trocar o ministro da saúde não foi apenas uma questão de infantilismo político, nem terraplanismo ideológico, foi uma viabilização de colocar em prática o plano assassino do Banco Central de “salvar” a economia, achatando a curva da contaminação do novo coronavírus pela própria contaminação. A ideia é acabar o isolamento social em nome da mentira de salvar empregos. O povo vai se contaminar em massa, vai morrer em massa, e no terraplanismo desses economistas de araque, o surto vai se esgotar nele mesmo e em pouco tempo. Assim a sabotagem contra o próprio povo vai salvar a gestão do sabotador Bolsonaro. Isso é tão tenebroso que o exército brasileiro está mandando ofícios para os prefeitos das cidades das regiões que eles acreditam serem mais afetadas, procurando saber a capacidade dos cemitérios e qual a possibilidade de criar novos túmulos. Nesse capítulo sombrio da História brasileira o maior sabotador do país é o próprio povo diante do espelho, que vive essa verdade como se ela fosse mentira.
Por Marcos Leonel – Escritor e cidadão do mundo
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri