“Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento”.
Fernando Pessoa
Contemplando a geografia única da existência, há só uma verdade inquestionável: o Rio flui. Encorpando-se desde a nascente, alimentando-se de incontáveis e múltiplos afluentes, ele flui. Às vezes nem percebemos o curso plácido das suas águas que parecem hipnotizadas pelas sombras do arvoredo ciliar, mas basta olhar o tapete de folhas secas flutuantes para termos a certeza inequívoca de que a corrente líquida tem vida e escorre pelas veias fluviais, lenta mas persistentemente. Outras tantas vezes, o seu fluxo apressa-se, açoda-se, desce num turbilhão, carregando tudo que encontra pela frente, despencando em cascatas e cachoeiras. Aí não temos dúvida quanto à sua fluidez, impressionados com sua força e violência. E mesmo quando, nos períodos de estio prolongado, o rio transforma-se em poças espaças e, aparentemente, encontra-se morto e imóvel, ele apenas hiberna, prepara o bote para a enchente futura. Sua rota está traçada no chão como o espinhaço de uma serpente. As curvas do rio, cheias ou esquálidas, demarcam apenas o seu fio de eternidade.
Vezes com águas turvas e barrentas, não conseguimos depreender sua profundidade e seus mistérios. E até mesmo com liquidez translúcida é sempre mais fácil beber a paisagem em volta, que muda como um caleidoscópio a cada instante e que é única e insubstituível e sem reprises, do que entender e vislumbrar e decifrar os enigmas guardados pela esfinge das profundezas, por conta das deformidades em filtro da refração.
Somos apenas baronesas flutuantes no curso d´água. Totalmente incapazes de definir a direção da rota. Cabe-nos apenas a inevitabilidade do movimento da nascente para a foz e é por ali onde nós e o ele fluímos. Cada baronesa, embora todas participem do mesmo percurso, faz a sua própria viagem. O rio é sempre o mesmo, mas cada uma percorre um outro rio. As águas têm temperatura, transparência, velocidade, pureza diferentes. Estamos mergulhados no mesmo rio, mas flutuamos em rios diferentes.
O destino final do desembarque, também, nunca sabemos. Algumas ficarão presos nas margens iniciais. Outras afundarão com as primeiras marolas. As baronesas mais frondosas se desfolharão com o mergulho nas cataratas. Algumas poucas, por fim, submergirão a caminho da foz. Mas o rio, impassível, continuará fluindo.
Com ou sem as baronesas ele continuará o seu fluxo. Até porque sabe que outras tantas virão para substituir as que soçobraram. Que marcas deixam as baronesas no curso das águas? Uma visão verde e breve do seu percurso errático, um vestígio fugidio como as pequenas ondinhas que a gota d´água desencadeia ao cair na superfície do rio. Maiores, mais enfolhadas, mais verdes ou ressequidas, menores e mais insignificantes, indiferente! As baronesas são meros artefatos à deriva no leito, adereços efêmeros e meteóricos. A única essência é o rio que , ininterruptamente, flui.
Olhares vesgos, observando de longe, até imaginamos que é o balseiro flutuante que escorre em procura do mar, vezes mansamente, vezes em enxurrada. Mas a escumalha apenas cavalga o corcel lépido da vida. Somos cisco, sujeira, lixo, detrito, refugo embaçando a limpeza cristalina da superfície, uma sombra para o rio que, negaceia, enigmaticamente, e fui, indiferentemente, com suas águas nuas…
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri