O Restaurante Pau do Guarda, em janeiro próximo, estará comemorando seus setenta anos. O bar, em meio à chatice avassaladora do dia a dia, é aquele refúgio último, uma espécie de bunker, onde os homens conseguem se proteger das bombas de fragmentação do trabalho contínuo e forçado. O local onde é possível afrouxar a gravata, tirar o paletó, conversar amenidades, contar piadas e liberar o riso. Lugar também de fazer amigos e, com a ajuda imprescindível da bebida e petiscos, anestesiar os machucões do cotidiano e até descobrir que a vida, este espaço compreendido entre o pagamento de um boleto a outro boleto, tem algum sentido.
Baudelaire dizia que a existência carecia, sempre, de algum analgésico para ser suportada: álcool, ópio, Bromazepam, orações… à sua escolha. Os bares mostram os homens despidos, com todas suas fraquezas e qualidades na vitrine. Defenestram as máscaras e desvendam e soltam aqueles bichos escondidos dentro de cada um de nós pelas convenções sociais: o leão, o macaco, o porco, a hiena, o veado. Se se quer entender o espírito de uma cidade, um dos caminhos mais efetivos é visitar os seus bares. Aqui em Crato, tivemos uma infinidade deles: “O Bar Social”, “O Ideal”, “O Cascatinha”, O “Dom João”, de “Ciço Lobo”, “A Boite Colibri”, “O Tinga”, “O Nenen”, “o Bar de Juarez”, o de “Pedro Praeira”, “de Gilberto”, “ a Casa de Noca”, “o Alagoano”, de “Luiz Jacu”, “O Garcia”, isso para falar apenas de alguns. Observar seu séquito de aficionados, suas potocas, espetáculos e mungangas é ver caírem os últimos véus de hipocrisia e vaidade que encobrem as reais fraquezas humanas.
O “Pau do Guarda” reina há setenta anos. Nasceu “Bar Tabuleiro” por seus donos, Cicim e D. Raimunda, mas foi batizado pelo povo com o nome lascivo de “Pau do Guarda” , por conta de um posto fiscal que existia defronte dele. Por longos e longos anos, suas portas permaneceram literalmente abertas dia e noite. Fechava apenas na Sexta-feira Santa. Pousada certa de qualquer notívago que se preze, ali se podia encher a cara, a qualquer hora do dia ou noite, ou curar os malefícios da rebordosa com o pirão de galinha ou o caldo de ovo famosíssimos em toda a história da culinária de botequins do Cariri. O moto-contínuo do Bar, facilmente, o levou à má fama por parte da sociedade cratense. Aberto a qualquer hora, se falava de encontros furtivos e proibidos de homens e mulheres casados. Rapidamente a sociedade determina o que é ou não um lugar para você frequentar. O famoso: aquilo não é lugar para você! O próprio nome popular “Pau do Guarda” ajudou a incensar a má fama, mas o bar tirou de letra e está prestes a completar a sétima década de vida, sempre de casa cheia e escancarado, sem nenhum preconceito, a todas as camadas da população. Nos últimos anos, já com os descendentes do casal na administração, virou “Tabuleiro da Carne”, mais restaurante que bar, mas respira, por todos cantos, ainda, aquele ar de flagrante boemia.
Cicim e D. Raimunda, hoje nonagenários, lembram daquela luta insana por manter uma casa aberta indefinidamente. Um trabalho de Sísifo. Lembro que, à época, nem em Recife havia bares como “O Nenen” e o “Pau do Guarda”, de portas abertas em feitio de emergência de hospital. Isso dava uma clara ideia da cidade viva e pulsante que era o Crato. Uma vila que descobriu que era possível duplicar os anos de vida dos boêmios, roubando-lhes as horas improdutivas de sono.
O Pau do Guarda merece uma festa de aniversário à altura da sua trajetória. Tornou-se uma instituição cratense. Um templo da boemia da cidade. A ruazinha onde se encontra o bar famoso chama-se Ana Triste (uma homenagem à esposa de Tristão Gonçalves que este ano, em outubro, faz dois séculos do seu trucidamento). Um dos nossos mais empedernidos boêmios comentava, entre um copo e outro, que acreditava tinha sido pela tristeza de Ana que ela tinha se mudado para ali: para matar suas mágoas junto do Pau do Guarda.
Um brinde ao nosso Bar mais querido!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri