Zé Celso Martinez recolheu-se ao camarim na manhã de quinta-feira (6). Era daquelas figuras que nascem com uma predestinação natural. Veio com script pronto e personagem definido para uma atuação gloriosa de mais oitenta anos. Vítima de um incêndio, tudo poderia ter acontecido, inclusive, por autocombustão por conta do seu incessante fogo criativo. Zé era um Vesúvio em eterna erupção. Buscou uma linguagem moderna nas suas produções, que fugisse do classicismo dos palcos europeus. Envolveu a plateia como parte integrante da sua trupe. Tornou o teatro mais sensorial e escandalizou a sociedade bolorenta e empalhada do Brasil, mostrando que não há imoralidade na Arte (o imoral estava justamente naquilo que a Sociedade havia transformado o mundo). Zé criou direções coletivas nos seus espetáculos e abriu a possibilidade larga de improvisações para os autores. Insurgia-se contra aquilo que chamava de Ditadura da Classe Média e do teatro que se reagia na tentativa inglória de conscientizar o inconcientizável. Para ele aqueles “devoradores de novelas e sabonetes” só degelariam na base da porrada. A primeira sede do Oficina, já profissionalizado, foi no Bixiga. Durante a Ditadura Militar as perseguições se seguiram, com a prisão e tortura de Zé Celso, invasão de peças como “Roda Viva” e agressões de atores e, depois, um incêndio criminoso que destruiu a sede em 1966. O Teatro Oficina que criou, uma das companhias permanentes mais longevas do Brasil, com mais de 60 anos, ganhou uma outra sede definitiva em 1992, com um projeto inovador de Lina Bo Bardi, depois tombado pelo IPHAN em 2010, defronte ao Viaduto Júlio Mesquita em São Paulo. Ao Oficina devemos algumas das mais inovadoras montagens do Teatro brasileiro como “O Rei da Vela”, “Roda Viva” e “Os Sertões”, uma adaptação da obra de Euclides da Cunha, uma overdose cênica de 27 horas. Lembro que uma das críticas que se fazia à nossa “Terrível Peleja de Zé de Matos” é que tinha duração de mais de duas horas! Em 2015, o The Guardian elegeu o Oficina como o Melhor Projeto Arquitetônico de Teatro do mundo.
Zé Celso vinha travando uma luta renhida contra o Grupo Sílvio Santos há mais de quarenta anos. Sílvio, proprietário de um terreno vizinho ao Oficina, queria construir três prédios de cem metros de altura o que desfiguraria, completamente, o projeto original de Bo Bardi. Ele tem grandes vidraças abertas ao terreno em volta, com árvores que compõem o cenário orgânico e natural do teatro, com seu palco inovador, móvel, de galerias laterais em feitio de andaimes. A guerra tem se arrastado com vitórias em batalhas forenses de lado a lado. No fundo, Zé Celso sabia bem, a grande contenda se faz entre duas dimensões da vida. Uma que se prende nos grilhões do Código de Barras e uma outra perspectiva que, visionariamente, sabe existir vida e um mundo mais belo e solidário para lá dos horizontes dos QR Codes. Zé Celso, como um profeta, apontava para esse caminho, demonstrou em encenações veredas e trajetórias mais generosas e altruísticas para a humanidade. Se pareceu impetuoso, intenso, libertino, violento, algumas vezes, é porque percebia que a sociedade estava em coma e não era possível acordá-la com beijos como o príncipe da Bela Adormecida. Zé Celso sabia que a função da Arte é estressar os confortados e confortar os estressados. Grande Zé!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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