O menino Hector, de 7 anos, mora em Arroio Grande, no Rio Grande do Sul. Uma cidadezinha de pouco mais de vinte mil habitantes, fronteiriça com a Argentina. Ali nasceu, TAMBÉM, o Barão de Mauá, um dos maiores industriais, armadores e banqueiros do Brasil do período imperial. Este finalzinho de ano, o nosso Hector fez um pedido inusitado ao Papai Noel que parece uma clara logomarca dos tristes e sombrios tempos “bolçais” em que vivemos. Um bilhetinho, escrito a lápis, em papel timbrado do seu caderno.
“Papai Noel,
Meu sonho é ganhar uma carne para
passar com minha família.
Tenho 07 anos.
Muito Obrigado, Papai Noel.
Hector”
A mãe, Patrícia Braz, compartilhou o desejo do guri nas redes sociais. Ela sabe que estes são tempos em que se guarda carne em cofre de segurança. E, como dizia o nosso Padre Vieira: “A carne não é fraca”. Fraco é quem não come carne. O piá mora na casinha com os pais e mais três irmãos. Hector tomou esta rápida decisão ao ser informado que, no Natal, este ano, não teriam churrasco, uma calamidade pública em se tratando de famílias gaúchas. Com a pandemia da Covid e a epidemia bolsolóide, a família de Hector vinha passando por sérios apertos nos últimos anos. Com boletos atrasados, a mãe precisou utilizar a internet de uma comadre para colocar o bilhete de Hector em redes sociais. Para sua surpresa, choveram doações de alimentos e em dinheiro que ultrapassaram mais de oito mil reais. No final de ano, os corações parecem mais brandos e sensíveis. O Natal dos Braz promete ser um dos mais fartos dos últimos anos.
Irineu Evangelista, o Barão de Mauá e o nosso Hector são conterrâneos. Distâncias astronômicas os separam. Cronologicamente, dois séculos exatos se interpõem entre o nobre do império e o garotinho do bilhete. O nosso Mauá foi um pioneiros em várias áreas econômicas brasileiras: montou o primeiro estaleiro, a primeira fundição de ferro, a primeira ferrovia de Pindorama e criou o terceiro Banco do país. Tornou-se o primeiro grande industrial brasileiro. Hector, duzentos anos depois, vive o desalento de um país que diz-se do futuro, mas sempre perseguido e a cada dia mais inatingível. Junto com mais vinte milhões de habitantes, o nosso pimpolho vive em insegurança alimentar. Sim, esse é o nome pomposo que agora inventaram para denominar aqueles que passam fome. Como dizia o nosso José Américo de Almeida: “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã”.
Ficamos felizes e emocionados com a realização de Hector nestas festas do ciclo natalino. O menino lançou sua garrafinha com a mensagem num mar virtual e conseguiu sensibilizar, com a pureza das suas cristalinas palavras, muitos corações mundo afora. Teve ainda a sorte de viver num estado do Sul que tem caixa de ressonância. No Norte e Nordeste, os gritos são sufocados e as lágrimas evaporam rapidamente sob o efeito do sol. E, mesmo assim, daqui um pouquinho, o induto de Natal passará e os sentimentos, novamente, se cobrirão de sua couraça magmática. Os boletos da família Braz continuarão a persegui-la sem trégua e os prazeres da carne terão que esperar, com sorte, um outro Natal.
Para que Hector não precise passar a vida escrevendo outros bilhetes ao Papai Noel é preciso resolver a distância incomensurável que o separa do seu conterrâneo o Barão de Mauá. Por que duzentos anos depois, nada mudou e alguns continuam esbanjando o supérfluo e outros persistem em ter que pedir a Papai Noel pelo essencial?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri