Nas epidemias, algumas cenas são atemporais. Independem se aconteceram no Século XIX, como as nossas de Cólera e Varíola, ou se trataram das de influenza ou peste bubônica já nos Novecentos. Postos em situações extremas, espremidos entre o sofrimento, a possibilidade crua do extermínio, os homens descem, rapidamente, à escala mais primária de humanismo: a busca desesperada pela sobrevivência a qualquer custo. Assim, parece-nos uma imagem medieval profissionais de saúde com roupas de astronauta; pessoas fugindo em desespero tentando escapar da moléstia; espertalhões vendendo remédios milagrosos contra a doença; enterros coletivos em valas comuns; corpos apodrecendo no meio das ruas; poderosos minimizando a carnificina das enfermidades, visando ao lucro; políticos tentando a todo custo sair bem na fita. Na França, os profissionais de saúde foram muitas vezes hostilizados por vizinhos, acreditando esses que eles poderiam trazer o Corona do trabalho para os condomínios. Estas mesmas cenas repetiram-se ao longo dos séculos em diferentes nuances.
O que nos traz alento e esperança são atitudes de um segmento pequeno da população que consegue divisar rumos e ver com nitidez em meio à treva e à dor. Na Itália , um padre acometido da COVID-19, necessitava de um respirador. Fiéis da sua igreja se cotizaram e compraram o aparelho, pois estava em falta na UTI. O reverendo agradeceu, mas cedeu a um rapaz mais novo com mais capacidade de recuperação. O padre acabou não resistindo. Na Itália mais de cem médicos acabaram vencidos pela doença que combatiam. Mesmo cientes do risco, muitas vezes sem os EPI´s protetores adequados, não abandonaram o campo de batalha. Mantiveram-se firmes na luta, até que as forças lhes começaram a fraquejar. Figuras solidárias de repente saltaram de todos os lados e passaram a ajudar os mais humildes no dificílimo período do isolamento. Alguns trouxeram víveres, outros música, entretenimento. Bonito ver nos hospitais a felicidade de profissionais no momento das altas, cientes todos de que não salvavam , naquele momento, uma ou outra vida, mas imantavam de esperança e luz a humanidade. Estas pessoas, clarividentes, são como respiradores nestes tempos sombrios em que vivemos.
O certo é que este período tenebroso há de passar, daqui a alguns meses a vida novamente entrará nos trilhos. Mas nada será como dantes ! Ficam algumas lições para os tempos que virão, depois dos enterros e sobressaltos. Pobres , ricos, brancos, negros, remediados, trabalhadores e patrões: estamos todos no mesmo mar, embora alguns em transatlânticos e outros em jangadas, o tsunami, quando vem, é devastador para todos. O bem-estar do meu vizinho, embora não pareça, tem uma relação direta com minha felicidade e minha saúde. Seu voto pode determinar a possibilidade de sobreviver ou perecer: urna não é penico. No frigir dos ovos, nas grandes epidemias, o que conta é a estrutura de saúde pública disponível, é isto que faz a diferença e que vai determinar o número de mortos e feridos. Moradia, emprego, saneamento básico, posse da terra , salário digno são os pilares mais importantes no combate às grandes tragédias. Sem essa infraestrutura mínima, estamos em franca desvantagem e é sempre bom lembrar que a epidemia é sempre muito socialista e nunca se tem garantia de quantos respiradores encontraremos quando for a vez de a gente chegar na UTI.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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