Um amigo me telefona, cedinho da manhã, com um vexame danado para dar uma notícia. Com aquele atropelo de quem tivesse resolvido o Teorema de Fermat. Ainda me espreguiçando, reprimindo os bocejos e a remela dos olhos, ouço seu depoimento madrugador. Lasca-me ele, eu ainda entre lençóis, sua tardia Teoria Milenarista.
O mundo vai se acabar!
Tento retrucar que isso não é novidade, só que a hecatombe final não vem por atacado, mas no varejo. A todo momento o mundo está acabando para alguns! Ele, no entanto, salta das suas ceroulas, meio afobado e pede que, por favor, não perca tempo com conversa mole, pois pode até não haver minutos suficiente para ele debulhar suas preocupações, antes que a Terra se dismilingue como sorvete em boca de banguelo. Os sinais, ele catalogou bem direitinho, eram, a seu ver, inequívocos.
Para onde se olha, arrepare bem, tem um destroço! Calor de pelar porco na Europa, inundações na Bahia, em Petrópolis e Belo Horizonte. Na Inglaterra, ano passado, morreram mais de mil pessoas por causa do calor. Terezina e Sobral para eles pareciam o Pólo Norte! E agora, você já se ligou? Dias desses deu uma chuva de granizo em Iguatu, meu irmão! Como diabos essa água foi congelar nas nuvens, num lugar que é um puxadinho do inferno? Essa semana, tu não assistiu ao noticiário, não? Aconteceu um terremoto em Jaguaretama! O povo todo pensou que estava com Mal de Parkinson! A terra tremeu lá, o povo parecia milho em pipoqueira! Se oriente, meu amigo! E, trezontonte, outro aviso vindo lá de cima! Em pleno outubro, mês em que se estrela ovo no calçamento aqui no Ceará, deu uma chuva aqui no Cariri de mais de 150 milimetros! Onde já se viu isso, me diga? Nessa época, tu sabe bem, tem cabra assaltando caminhão para roubar a água do radiador; afanando pedreiro para aproveitar a água do nível! 150 mm em outubro? Se prepare, amigo, cuide de fazer suas orações e pedir perdão pelos seus pecados! Desligou, avexado, creio que correndo para arrumar as malas.
Levantei preocupado, fiz a faxina matutina e, no café, pus-me a pensar. Olhando ao redor, o mundo anda mesmo dando bunda canastra. A mentira deslavada virou plataforma de governo. O esporte nacional não é mais o futebol mas o tiro ao alvo. E o alvo preferido são os negros e os pobres. Há meninos telefonando para a polícia denunciando um crime hediondo: fome! Tem deputado travestido de Rambo de fuzil em punho, lançando granada em Polícia Federal. Enquanto isso, santos homens de Deus, agarram-se com barras de ouro, enquanto recitam versículos bíblicos. Hordas de pretensos cristãos invadem templos e eventos religiosos e xingam e agridem babalorixás, padres e fiéis, tudo isso em nome de Deus. Resta saber se o deus se trata de Mardok ou de Odin. Estudantes fazem a faxina urbana, tocando fogo em mendigos. Policiais reconstroem as Câmaras de Gás: os judeus agora são os favelados. E, finalmente, se acabou com a corrupção no Brasil, foi só torná-la oficial, um programa de governo: “Meu desfalque, Minha Vida!” Qualquer denúncia é só usar a manobra do gato: enterrar o excremento e proibir a exumação por uns trezentos anos. Tivemos até um pandemia que durou quase dois anos, matou um mundão de gente e enquanto o povo gritava: — Água meus netinhos! o governo respondia: — Azeite, senhora vó! Talvez meu amigo tenha lá suas razões. Até o Pai Eterno, me lembrou ele, parecia mais condescendente, paciente, não era mais aquele de Sodoma & Gomorra!
Terminei o café mixo e o pão com manteiga. Um pesado ar de fins de tempos me tomou conta da alma. O telefone tocou novamente, atendo e ouço a voz ofegante e agora mais agoniada do meu amigo do outro lado:
— Cuide, rapaz! Agora tenho certeza! O mundo tá numa peiinha de nada. Vi agora mesmo na televisão. Um monte de crente de Bíblia debaixo do braço, gritando como se o Criador fosse mouco, querendo, por fim da força, eleger o Satanás para ser prefeito do céu! Cuide!
Acredito até que o galinheiro não vai sufragar a eleição da raposa. Mas, pelo sim, pelo não, estou arrumando meus teréns e meus picuaios. Amanhã voto cedinho e parto para o Cococi. Já pedi meu passaporte ao prefeito da cidade, Heitor Feitosa. Dizem que lá é o fim do mundo e é lá que vou aguardar o outro Apocalipse que, apesar das previsões drásticas do meu amigo, espero que não chegue no domingo, apesar dos sinais mais que abundantes que a vida está a nos mostrar.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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