Na casa, os cadernos se espalham, alguns de tão velhos parecem ter ganhado asas, outros rastejam, alguns estão escondidos, talvez para guardar segredos. Palavras e números criam um arsenal de esperança. Depois de uma certa idade, o jeito é apelar para sorte. O ânimo e a disposição mudam de estação, o corpo já é uma máquina velha, onde as peças estão desgastadas, mas ainda funciona precariamente como toda máquina velha. A diferença é que a máquina humana tem outras engrenagens: complexas, confusas e únicas. Enquanto isso, Raimundo, escreve sobre o raio e o mundo. A máquina velha anota as possibilidades e faz os cálculos possíveis. Aguarda! Não foi desta vez e continua escrevendo.
Raimundo, a máquina velha, não desiste, junta suas memórias e suposições, como se tivesse fazendo ciência. Os bichos, as pessoas e as coisas dos seus sonhos ganham códigos para sua sorte. Sonhar com a mãe é certeza de dar o número quatorze. Se sonhar andando pela rua vai dar cavalo e se um defunto aparecer no meio do sonho vai dar elefante.
Raimundo joga muito e ganha muito pouco, ganha mais palpites que dinheiro, não deixa de ter palpites nem de jogar, e ainda, escreve reto em sortes tortas.
Raimundo diz que o Jogo do Bicho é diferente da Mega Sena, mas diz também que não tem ideia de como jogar, mas joga. Parece que jogo tem um segredo: viciar a esperança.
Quando ganhar muito dinheiro, desses que demoram dias para contar, aquela velha máquina, talvez continue sendo uma velha máquina, sem peças novas, com a mesma vidinha de quem nunca ganha. Talvez nada mude para Raimundo. A idade desfez a exigência da mudança. Raimundo joga para acertar um erro que não foi seu e dividir o que nunca pode dividir, até se tornar uma máquina velha.
Raimundo, a máquina velha, continua escrevendo sonhos.
Os cadernos vão se multiplicando a cada dezena de jogadas, uma literatura cheia de intervalos e imaginações vai sendo escrita, porque Raimundo, dorme pouco, mas sonha muito.
Por Alexandre Lucas. Pedagogo, integrante do Coletivo Camaradas e presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais do Crato/CE
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri