Se o Havaí é aqui, como diz o poeta do alto da sua cultura de resistência, a Bolívia também é. Aliás: o Brasil reflete em sua sociedade o receptáculo universal do golpe. Através de incansáveis exorcismos da democracia, o Brasil é pedra fundamental do golpe. O golpe é inerente a quem inventou o Brasil. A sociedade brasileira não nasceu, ela foi tramada nos corredores do poder e assim se comporta, como se fosse poder e nunca trama. É essa sombra medonha que confina as relações sociais em quadrados excludentes, monitorados pelas forças opressoras de cada um, sempre de prontidão para invadir e solapar o direito que não é só do próximo, mas de todos. A trama do golpe é fazer com que a sociedade sabote a si mesma.
A sabedoria da sociedade brasileira em ser instrumento do golpe tem a catatonia sobrenatural dos que são possuídos, ao mesmo tempo em que se tem a água benta escondida nos bolsos para a salvação da pátria. Da mesma forma que a imoralidade para ter razão de existir, reivindica para si a moralidade, o homem, dentro do maniqueísmo político-religioso, para legitimar a sua malignidade e fundar o inferno, ele reivindica para si a divindade. Não existe golpe sem a presença de Deus. Assim foi no Sinédrio, quando Anás, Caifás e todos os outros “ás”, que tinham poderes políticos e religiosos, tramaram a morte de Jesus, em nome de Deus e por questões de poder. A sociedade, como instrumento do golpe, escolheu Barrabás. E beberam vinho vulgar e cantaram canções chulas, depois de terem, sinceramente, aplaudido a tortura.
No ato já histórico em que o político de extrema direita Luís Fernando Camacho segura uma bíblia e promete devolver o Palácio do Governo boliviano a Deus, com a deposição golpista de Evo Morales, ali já se sabe que a vida não será nada fácil para os povos indígenas, que formam a sociedade boliviana em sua maioria. São pobres que permanecerão, agora, mais do que pobres, para muito além da fronteira dos coitados. A instrumentalização de Deus como forma de opressão e tirania, na Bolívia, equivale aqui a um cabo e um soldado, segundo o evangelho da família Bolsonaro, por intermédio do ungido na lama do calvário: Eduardo Bolsonaro. Ostentar a bíblia e exibir uma imagem de Nossa Senhora já é uma afronta secular às várias etnias indígenas da Bolívia, donos naturais da terra, que preservam suas culturas e suas crenças. Queimar a bandeira Wiphala é cultivar uma guerra civil plena, além de constituir a renovação do contrato de escravidão, dessa vez sem voltar no tempo e invocar as forças malignas da colonização europeia, uma vez que o neoliberalismo é tão contemporâneo quanto o racismo.
A bandeira Wiphala não só abriga a originalidade dos povos indígenas Quichua e Aimarás, em seus milhões de habitantes andinos, mas também representa a irmandade dos povos andinos, as suas ancestralidades e suas aspirações evolutivas, que assim são e assim eram, desde que o homem branco aportou, trazendo na bagagem o racismo supremacista, sua religiosidade decaída no poder, e sua cultura de morte, de escravidão e de aniquilamento. Onde existe o poder, existe uma leitura demoníaca da bíblia. Nunca a bíblia foi tão chafurdada, foi tão achincalhada, quanto agora. As tendências neopentecostais transformam a palavra de Deus em bravatas mercadológicas, onde a única coisa divina que existe é o poder insofismável do dízimo. O milagre dos pastores eletrônicos é transubstanciar um rebanho de ovelhas em um curral eleitoral. Assim se inventam os aparatos da ordem e do progresso. Enquanto pastores, políticos e agregados criminais progridem suas fortunas, e a sociedade fiel cuida de colocar em ordem as infortunas morais da própria sociedade.
Queimar bandeiras, queimar casas, prender, assassinar, torturar, censurar, menosprezar, praticar o racismo, evocar o direito de definir o direito dos outros, proibir, violentar, aniquilar, canalizar o capital para esgotos profundos, escravizar os pobres, tornar pobre os que ainda não eram pobres, instituir privilégios a poucos, impor a mão pesada e suja da lei para muitos, estabilizar a projeção social a partir da tradição familiar, estipular benefícios espúrios para uma minoria, condenar todas as outras minorias, absolver todas as ignomínias sociais em nome de irmandades secretas ou não, construir muros sociais propositais e excludentes, humilhar, violentar moralmente, decretar o fim do meio ambiente, não ter ambiente cultural, militarizar a educação, cultuar a violência como forma de resolver uma dor de dente, degradar, vilipendiar, exterminar, cercear, mentir descaradamente, descaradamente desmentir, trair amigos, usar o poder em família e em milícias, criar o direito de ser pilantra oficial e criar a Igreja Divina da Canalhice. Todos são aspectos recentes de recentes golpes dados no Brasil, com apoio total do recente povo temente a Deus.
Por Marcos Leonel – Escritor e cidadão do mundo
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri