A vida, feito ovo, comprimida entre paredes. Que crimes teremos por acaso perpetrado? A rua deserta, à frente, sequer consegue resplandecer em meio à janela que a emoldura. A única comunicação com o mundo: o olho mágico da TV que, dia a dia, conta religiosamente as baixas, os feridos, os sufocados. De repente, o ar invisível e impalpável passou a ser o sonho de consumo de todos. E a vida, como uma rã trôpega, tenta, desesperadamente, escalar as encostas do abismo em que se viu encerrada. Um cão late à distância, figuras espectrais cruzam as ruas, desconfiadas e evasivas, fugindo à aproximação das outras, como se tivessem escapado de um leprosário. O simples toque tomou ares de contravenção e os sorrisos, agora, são proibitivos e mascarados. A distância auferiu auras de amorosidade, o homem deixou de ser um animal gregário. Se já vivíamos todos encerrados em nossas muralhas internas, onde os sentimentos e a sensibilidade não conseguiam escalar as penedias intransponíveis das palavras; percebemos que, súbito, outros muros foram construídos, apartando fisicamente as almas que estrangeiras tentavam-se entender por idiomas díspares e impenetráveis. Como Crusoés perdidos na ilha, impossível entender todas as nuances dos naufrágios. Os deuses dos Shoppings, o brilho das joias, a opulência das grifes, abruptamente, se vêm substituídos por um único bem de consumo: sobreviver! Barco à deriva, sem víveres e tripulantes, sem perspectiva de porto, à frente os auspícios da tormenta e o iceberg.
Mas pela janela, infringindo as leis monocórdicas do tempo, a primavera invade o apartamento, sem solicitar anuência. No sopé da serra, os ipês vestem seus mantos dourados para as festas cíclicas dos solstícios da vida. Em pouco, estenderão seus fulvos tapetes pelos caminhos convidando a todos para a viagem pendular das novas estações. Em meio ao gris, a semente da vida, soterrada e fértil eclode para novas fulgurâncias e cintilações.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri