No tempo dos meus avós, a palavra empenhada carregava consigo ares de coisa sagrada e irremovível. Nem necessitava presença de testemunhas ou carimbo de cartório. O que foi dito estava escrito, como hieróglifo, nas paredes de um templo. Promessa feita era promessa cumprida, mesmo que sobre trancos e barrancos. Depois é que apareceram os políticos… E havia lá, muitos anos atrás, os extremados: aqueles que sob um mínimo empurrãozinho, frisavam o cenho, fechavam a cara e resolviam que a partir daquele momento pau era pedra e mingau se tratava de aço inoxidável. Estes dias, numa rede social, o escritor/pesquisador cratense Heitor Feitosa trouxe à baila, uma história de um desses “opiniosos” de carteirinha. Apelidado de Cirilo Grude, a figura que morava em Santa Fé. Consta que era remediado e excêntrico e, com mania de limpeza, usava uma roupa pela manhã e outra à tarde. A mulher reclamou daquele exagero que demandava muito trabalho na lavanderia e muito esfrega-esfrega. Cirilo, prontamente, disse que se o problema era aquele, estava resolvido. A partir daí, passou a vestir apenas a mesma roupa, diariamente, não trocava até que estivesse totalmente em frangalhos. O Grude que o acompanhava nos panos terminou virando sobrenome.
Ramiro Maia, um dos maiores livreiros do Crato, contou-me que na construção do Grande Hotel, ali na Siqueira Campos, nos anos 40, um construtor havia empreitado a obra com o proprietário José Teles. Uma inflação galopante, à época, fez com que, imprevisivelmente, todo o material de construção quadruplicasse o preço. O construtor, um pobre mestre-de-obras, levou a construção até o final. Terminou falido, mas não quis voltar atrás no negócio acordado.
Essa inflexibilidade era bem típica dos coronéis do Nordeste. Um dos últimos de Pernambuco, o Coronel Chico Heráclito de Limoeiro, falecido em 1974, carregava consigo incontáveis histórias parecidas. Já idoso, promoveram na cidade um jogo de futebol entre Limoeiro e a vizinha Nazaré da Mata. Chico não conhecia bem as regras do futebol, mas ali estava apoiando sua cidade e, também, trazendo a autoridade necessária para que não houvesse qualquer possibilidade de tramoias que prejudicassem o glorioso Limoeiro Football Club. Partida duríssima, transcorreu num zero a zero incômodo, até que, no finalzinho do segundo tempo, o juiz cai na besteira de marcar um pênalti contra o Limoeiro. Um assessor do Coronel corre e explica o que estava acontecendo e a tragédia prenunciada: perder para o Nazaré, dentro de casa! O Coronel quis saber que diabos era pênalti e o assessor explicou que botariam a bola naquela marquinha, defronte da trave, e chutariam direto pro goleiro. Com quantos na barreira? — quis saber o Coronel. Sem ninguém, vai ser gol certo, alertou o secretário. E aí, como é, o senhor vai deixar, Coronel? Chico matutou um pouco e, respondendo, disse que tinha dado sua palavra que a lei seria mantida. O juiz marcou, tá marcado, ele é a autoridade máxima no campo, tem que bater o pênalti! O assessor se agoniou: “Mas Coronel, nós vamos perder! Não é justo! Chico, então, saltou de seus coturnos. Perder? Perder? Tu tá doido? Vai bater o pênalti, sim, mas do outro lado, contra o Nazaré! ”
“E já de 38 na mão, avisou: a lei será cumprida, mas do lado de cá, num tem filho de uma égua nesse mundo que bata pênalti contra nós! É preparando a bola e a bala zunindo!”
Aqui no Cariri, o Coronel Nelson Alencar, do Lameiro, tinha palavra pétrea. Era correto e nunca se soube de qualquer ato seu que se afastasse um milímetro da palavra empenhada. Contam que ainda menino, na cozinha de casa, queimou-se numa trempe do fogão. A mãe, então, reclamou: — Também não sei o que quer menino em cozinha! O filhote de coronel retrucou: Também não sei , minha mãe! Desde aquele dia nunca mais, na vida, pôs os pés numa cozinha. Contam — e aí nunca se sabe quando a coisa é verdadeira ou já se banha de folclore — que a esposa , no quarto, grávida do primeiro filho, sofria com as dores do parto e, ao ver o coronel próximo, entre uma e outra contração, gemeu: “Estou sofrendo por sua causa!” O Coronel , calmamente, teria dito: “Pois se acalme, essa é a última vez que vou lhe fazer sofrer!” Verdade ou não, o certo é que a prole do nosso Nelson ficou apenas no primeiro rebento.
O meu avô Vicente Vieira, lá da Lagoa dos Órfãos, em Várzea Alegre, tinha um Engenho de Cana de Açúcar e fabricava rapaduras. Um dia, irritou-se porque alguns compradores levavam a mercadoria e ficavam de vir pagar depois e não apareciam. Ele fincou pé e jurou que daquele dia em diante nunca mais venderia fiado. Essas determinações pétreas e inflexíveis não são fáceis de manter, por conta da possibilidades de exceções que comumente aparecem. Dias depois, chegou um sobrinho e afilhado do velho Vicente que era acostumado a comprar rapaduras, vezes a vista, vezes para pagamento posterior. O velho nunca tivera problemas com ele. O afilhado completou a caminhonete e, passando defronte da casa, apenas avisou : — Padrinho, vou levando dez cargas! Na quinta venho acertar! Meu avô, então, lembrou da palavra dada anteriormente de que só venderia a vista. Por outro lado, sentiu-se constrangido em confrontar o rapaz que, além de parente e apadrinhado, nunca lhe tinha trazido problemas. Pediu que o sobrinho aguardasse um pouco. Fez um cálculo rápido do valor da dívida. Foi no cofre, rodou o segredo para um lado e para o outro, abriu, tirou os dois contos de réis. Foi até ao carro e entregou ao afilhado. Que diabos é isso, tio? O velho Vicente, então, desvendou a solução que encontrara para não esfacelar a promessa. Estou te emprestando o dinheiro para você pagar a rapadura. O rapaz recebeu, meio confuso, o dinheiro nas mãos. Vicente disse: agora me pague! O sobrinho lhe devolveu o dinheiro.
— Pronto! Tá pago! Emprestei o dinheiro a você! Pra você eu empresto! Agora fiado, fiado não vendo mais rapadura é nunca!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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