O fim de um ciclo, mesmo sendo uma mera abstração da infinitude do tempo, nos remete, como num bólido, às infinitas possibilidades de um recomeço. Como se virássemos a página de um livro e passássemos a escrever um novo capítulo da história. E parece que, até aquele ponto final a ser aposto no dia 31, não fomos nós o autor dos capítulos anteriores da novela. Parte teria sido escrita pelo acaso, parte pela má sorte, frações pelo destino, parágrafos vários por perseguidores do protagonista principal. É como se uma mão invisível tivesse sido, até aqui, o compositor principal de toda a sinfonia. Paira-nos a esperança de que, soadas as 12 badaladas no Réveillon, como uma Cinderela às avessas, a abóbora se transformará em carruagem, o vestido da borralheira virará roupa de festa e a chinela currulepe — vulpt ! – transfigura-se-á (com a mesóclise devidamente autorizada pelo Temer) em sapatinho de cristal. E, nos meses seguintes, certamente, esperamos que um príncipe ou uma princesa nos baterá à porta, com um dos sapatinhos perdidos, em busca do pé e encaixe perfeitos. No conto de fadas de cada um de nós, infelizmente, nunca há o fecho “E foram felizes para sempre…”
A grande colcha de retalhos da vida tem nas nossas mãos o segredo de sua própria tessitura. Somos nós que, diligentemente, vamos escolhendo os paninhos multicoloridos e, com a agulha do cotidiano e fios de esperança, os vamos costurando, pedacinho por pedacinho. A mão do acaso, de vez em quando, costura um fragmento à nossa revelia, vezes mais colorido, vezes mais opaco, vezes mais brilhante, vezes mais puído, no grande manto que vamos tecendo. Angustiamo-nos tantas vezes com essa aparente usurpação da nossa criação artesanal, imaginando que os fragmentos interpostos pelo destino tornam nossa obra mais feia e desfigurada. Basta, no entanto, tomar alguma distância regulamentar para descobrir que a beleza da nossa colcha não está restrita a esse ou aquele retalho, mas à diversidade do conjunto nas suas cores e no seu formato. O brilhante, o opaco; o claro, o escuro; o novo e o puído; o quadrado, o redondo são nuances diversas que levam à beleza estonteante do todo. O fragmento de seda, o tacozinho de morim e o peçazinha de chita tornam-se grandes, belos, desejáveis, simplesmente porque estão juntos: separados estariam na lixeira. A tentativa de retirar do painel a tirazinha que nos parece mais insignificante e desbotada, além de inglória, quebraria, totalmente a integridade e unicidade da nossa colcha. Seria como esconder um dois de copas que parece uma carta menor de um castelo de cartas. Assim, na nossa vida, a alegria, a dor, os ganhos, as perdas, os fracassos e sucessos, as quedas e soerguimentos são os pedacinhos brilhantes e insubstituíveis da nossa imensa e bela colcha de retalhos.
Imaginem agora se tivessemos a clarividência de unir a nossa colcha a outras tantas tecidas por amigos e companheiros ao nosso redor. E se cada um, mundo afora, costurasse entre si cada uma das suas colchas. Unidos o Sari indiano aos pedacinhos das burcas árabes, a fragmentos do linho europeu, a taquinhos do kimono japonês, ao crepe estampado chinês, ao voil rústico russo, à cambraia ucraniana, ao kosher israelense. Cobriríamos todo o planeta com um véu multicolorido que nos encheria os olhos e nos agasalharia a todos no inverno e nas intempéries. E, quem sabe, descobriríamos que o segredo de tudo não está depositado nos pequenos fragmentos de pano, mas no fio invisível que os perpassa e tem a força de unir todos os pedacinhos.
Cada finalzinho de ano vem com a semente do renascer. Eclodir e vingar depende do empenho de cada um de nós. A messe universal advém da semeadura de cada rocinha, em cada quintal por mais ínfimo que seja. Após cada virada, como um sertanejo, vemos as colheitas perdidas pela seca e devoradas pelas lagartas. Mas é preciso manter a epifania, a revelação, vislumbrando sempre os futuros pomos. E lembrando do colorido da colcha esquecemos o puído retalho, que agora são ínfimos e insignificantes.
Feliz Natal!
Um 2024 colorido, tecido, unido e estampado!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri










