“Em um canto do engenho
Da cana vi os bagaços
Por moendas, lenha e tachos
Espremida em pouco tempo
De cana se fez melaço
De cor, sabor e textura
A tornando rapadura
O doce que mais desejo”
Jardel Cavalcante
Houve um tempo em que a garapa de cana era a seiva que nutria o Cariri. Canaviais cobriam de esmeralda nossa paisagem e um silvo melodioso ecoava continuamente, quando os dedos do vento arpejavam as cordas pêndulas das folhas que se espalhavam, milimetricamente, cobrindo, como um manto, vazantes, campinas, brejos e aclives. Nas entressafras, de repente, as hastes se faziam paíço que seria, logo depois, lambido pelos lábios sôfregos do fogo. Fogo que seria domado, na sua sofreguidão, nas clareiras protetoras dos aceiros. Engenhos preenchiam o nosso pé de serra , como um anexo das casas senhoriais. Mantinham um porte e arquitetura aristocráticos. Postos em cimos, olhavam o mundo com um ar imperial de orgulho e de domínio. Estendiam, à sua frente, o tapete ebúrneo do bagaço da cana, tecido, cuidadosamente, pelo arrastar dos banguês no passo cadenciado e preguiçoso do burro de carga. Dir-se-ia a visão de um castelo medieval, em tempos invernosos, com o chão atapetado de neve.
O Engenho dividia-se ao meio em dois compartimentos. De um lado a Casa de Máquinas, com a voracidade das suas moendas que trituravam a cana, sem piedade, levadas pelas mãos temerosas do Metedor. As canas que chegavam, atravessadas em cambitos atrelados em cangalhas de burros, trazidas pela turma do eito que as recebia dos cortadores de cana nos canaviais. As moendas ganhavam força rotatória motriz pela máquina a vapor ou pela tração de bois e estava nas mãos do Mestre de Máquinas. Do outro lado, a Fornalha com suas múltiplas caldeiras que iam diminuindo de tamanho até chegar no Tacho final onde a garapa, depois de passar, num processo de adensamento, de uma para outra, pelas passadeiras, terminava apurado em mel e temperado com mamona. Chegando ao ponto, era levado para as gamelas. O fogo da fornalha era mantido pelo metedor de fogo, uma das mais inóspitas atividades do engenho e mantido pelo bagaço seco trazido pelo mesmo banguê que levava o bagaço úmido para ser secado ao longo da bagaceira. O mel era mexido pelos cacheadores com longas pás até chegar no ponto e ser levado às fôrmas que dariam, definitivamente, forma à rapadura. A fornalha era comandada também por um Mestre, cheio dos saberes próprios e misteriosos da sua Arte.
Meninos bebiam garapa, sempre sob os olhos atentos do mestre, temendo o risco do produto azedar. No terreiro da Casa Grande, mulheres puxavam o alfenim depois de tirarem o mel de pedaços de cana que tinha sido colhido, do caldeirão, no tempo exato, antes do ponto de rapadura. Numa das dependências da fornalha , próximo ao grande garajau onde eram depositadas as fôrmas de rapadura para o esfriamento, um outro mestre preparava batidas, temperando o mel no ponto certo. Após espancá-lo demoradamente em um caldeirão de cobre, formando uma torre, levava ao resfriamento. Depois de formada batida seria envolvida em folhas secas de bananeiras e distribuída, em geral, entre amigos e parentes.
As moagens eram uma festa. Terminados os trabalhos à noitinha, trabalhadores se reuniam sentados na bagaceira e histórias saíam das línguas como o bagaço saltava das moendas. Em alguns dias da semana, alguns engenhos destilavam aguardente e, ungidas por esse unguento, as conversas multiplicavam-se e varavam a madrugada.
As moagens enchiam o mundo com seu cheiro adocicado. Meninos catavam os restos da rapadura nas gamelas e o gado aproveitava da tiborna catada pelas passadeiras e lançada como refugo num cocho longo do lado de fora da casa de engenho. E o tapete da bagaceira oferecia-se às rodas de conversa e às brincadeiras de esconde-esconde.
Um dia, a indústria rudimentar do engenho terminou por ser engolida pela modernidade. O açúcar refinado passou a perna na rapadura, o confeito zombou do alfenim, a garapa foi substituída pelo refrigerante e até a cachaça passou a ser brega e retrô frente à cerveja e ao whisky. Os engenhos apagaram o fogo e se postaram à beira das estradas como um mero fóssil de um tempo dinossáurico .
Mas ainda existem meninos, de cabelos brancos e movimentos lentos, moídos pelas moendas do tempo, triturados até o bagaço pelas vicissitudes da vida que ainda sentem aquele cheiro doce no ar. E os meninos aprenderam as lições da cana: macerados deixam escorrer seus mais melífluos sumos. Eles sobrevivem das doces lembranças daqueles tempos caramelizados: ternos como o alfenim que desmanchava na boca e voluptuosos como o mel que untava as gamelas no calor aconchegante das fornalhas.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri