O crime tinha abalado toda Matozinho. E não era pra menos! Na vila, o delegado Carlúcio Peralva corria o risco de morrer de depressão. Tirante briga de vizinho, enrusga de marido e mulher, arruaça de pinguço, um ou outro aquieta-arreda, nada de novo por ali acontecia. As dobradiças das celas da prisão tinham enferrujado e, na tentativa de abri-las, rangiam mais que galamarte alimentado com carvão. Aquele tinha sido o grande homicídio da cidade em mais de cinquenta anos! Guardadas as proporções, uma espécie de Jacarezinho daquelas brenhas.
Tudo tinha acontecido –nestes dias, informaram-me diretamente de Matozinho– há uns seis meses. Defronte do Bar de Giba. Era já noite alta, num meio de semana. Cravildo Jurubeba era proprietário de um pequeno armarinho na vila. Negociava itens vários que iam de utensílios domésticos e agrícolas, confecções, legumes e mantimentos. A Crajuru, a loja dele, era um protótipo dos atuais mercantis. Pois bem, na malfadada noite, Cravildo bebericava e batia papo com dois outros amantes do copo, quando a tragédia aconteceu. De repente, sabe-se lá como, adentrou o ambiente um temido pistoleiro da região, conhecido e temido pelo nome de “Sprito de Poico”. Aproximou-se, como um gato, de um Cravildo já meio grogue e de costas e lhe disparou, a queima roupa, dois tiros, com um revólver velho de dois canos. Foi cortar a espoleta e o homem estender-se no piso, estrebuchando nos últimos estertores. Nem houve tempo para vela e nem extrema-unção. Terminado o serviço, “Sprito” escapuliu como uma alma, no caso, apenada. Não antes de avisar , numa franca ameaça, às testemunhas:
— Aqui, ninguém viu nada! Se alguém der notícia, não esqueça de se despedir, antes, da família!
O caso, como era de se imaginar, teve uma repercussão enorme em Matozinho. Primeiro pelo insólito e pelo incomum e depois, pela curiosidade de todos, quanto ao autor do delito. E só havia três testemunhas oculares do fato, naquelas altas horas da madrugada. Giba, o barman; Jojó Fubuia, o mais doutorado pinguço da Vila e Pedro Caldo de Bila, um magarefe da cidade, sujeitinho tido como fraco e medroso, como o próprio sobrenome estava a apontar. Perguntados insistentemente sobre a autoria, ninguém tinha visto nada, estavam bêbados, alguém tinha ido ao banheiro, outro estava sem os óculos.
Levado o pobre Cravildo para a terra dos pés juntos, o delegado Carlúcio Peralva intimou os três testemunhas para uma audiência hoje na Delegacia. Comentava-se que até a própria autoridade, não afeita a emoções tão fortes, resolvera protelar o máximo possível a oitiva. Sabia da autoria do crime, de antemão e, também, não queria se envolver demasiadamente na pendenga.
O primeiro a ser ouvido foi dono do bar: Giba. Resolveu, rápido, a questão. Disse que nada tinha presenciado, uma vez que na hora do ocorrido, fora à cozinha, pegar uns tira-gostos e ao voltar o fato já estava consumado e o homicida já havia se escafedido. O próximo a ser inquirido, Pedro Caldo de Bila, trêmulo como um parkinsoniano na Sibéria, disse: nada presenciara. Peralva, de cenho franzido, perguntou-lhe: como, se na hora exata ele estava bebendo na mesa com a vítima? Pedro afirmou que, quando o assassino entrou de fininho, ele estava de cabeça baixa tentando pescar do prato, uma arribançã, como tira-gosto.
— E quando o tiro ecoou, seu Pedro? Você não levantou a cabeça , não?
— Levantei, mas vi só o homem estendido no chão. O cabra que atirou já tinha escapulido.
Peralva, chateado , mas no fundo aliviado, mandou chamar a última testemunha: Jojó Fubuia. Imaginou que, eternamente com língua trôpega, sob o efeito da mendraca, ele terminaria por elucidar a autoria do bárbaro assassinato. Sentado na frente do delgado, Fubuia , àquelas horas, já parecia ter espantado todos os anjos da corte celestial.
— Seu Fubuia, onde você estava quando o primeiro tiro ecoou, atingindo , de morte, o Sr. Cravildo Jurubeba?
— Seu Delega, eu tava de costas pro assassino, a um metro de distância de Cravildo!
— E quando pipocou o segundo tiro, seu Fubuia, onde você estava? Você viu o pistoleiro?
— Quando pipocou o segundo tiro, seu Delegado, eu já estava em cima da Serra da Jurumenha, a umas três léguas daqui!
O escrivão Juscelino Mata-borrão, fitando as três testemunhas, comentou entre dentes:
— Se mal pregunto: Vocês serviram o Exército? Aprenderam com o Pazzuelo, foi?!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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