“E fez Deus os dois grandes luminares:
o luminar maior para governar o dia,
e o luminar menor para governar
a noite; e fez as estrelas.
E Deus os pôs na expansão dos céus
para iluminar a terra.”
Gênesis 1:16,17
Como no Gênesis bíblico, início de tudo e de todas as coisas, sempre imaginei que, partindo para uma escala infinitesimal, era possível imaginar a criação e formação do caráter humano. E, como Deus, para iluminar a consciência, os caminhos tortuosos da existência, nós, também, necessitamos de Luminares. Existe, claro, o Luminar da Família, aquele que ajuda a governar nossos dias e, do outro lado, o da Escola, aquele que tem capacidade de clarear nossas noites. Acontece que nossos mestres, não diferentemente de todos seus alunos, possuem maior ou menor luminosidade, voltagens e lumens diferentes, com a capacidade, de aclarar um pouco só das veredas da vida ou tornarem-se verdadeiros sóis, postados na expansão dos céus, e mostrando e delineando a vida em todas suas dimensões.
Conto, na minha história, com uma dezena de professores que tiveram essa força criadora, a quem devo uma parcela importante daquilo que penso, daquilo que defendo, daquilo que sou. Impulsionaram meu voo com a energia inercial necessária para que chegasse até o infinito. Se meu adejo deixou a desejar, não foi por culpa deles, faltou-me apenas força e ímpeto nas asas e no coração. Um dos meus Luminares foi a professora Sílmia Sobreira, nascida em Juazeiro do Norte. Nos anos sessenta, recém chegada da França, onde fez mestrado, Sílmia tornou-se minha professora de Francês no Colégio Estadual Wilson Gonçalves e na Aliança Francesa. Mas não foi apenas uma mera mestra de línguas. Sílmia trouxe uma grande bagagem cultural da Europa, ensinou-nos não só a língua que nos abriu caminhos antes impensados, mas iniciou-nos na bela música francesa, na pintura, na literatura riquíssima da terra de Victor Hugo e no belo Cinema que palpitava na Nouvelle Vague. A ela devo a leitura, em vernáculo, de autores como Gide, Françoise Sagan, Victor Hugo, Anatole France, Jacques Prévert, Faulkner.
Retornando da Europa, em plena Ditadura Militar, Sílmia, uma figura fisicamente frágil, enfrentou os Anos de Chumbo com força de gigante. Publicava artigos fortes, críticos ao Regime de Terror, no jornal Tribuna do Juazeiro. Na sala de aula, no entanto, nunca fez proselitismo político, acredito que temia que seus alunos terminassem por vir a sofrer as perseguições que logo cairiam sobre ela. E nem precisava discurso, o poder do exemplo transmitia lições bem mais duradouras. Por volta de 1974, foi presa e torturada. Depois disso, resolveu fixar-se em São Paulo, talvez porque lá seria mais fácil fugir das perseguições. Tornou-se Psicanalista Lacaniana, reconhecida e incensada em terras paulistanas. Encontrei-a, algumas poucas vezes, nas suas raras visitas ao Crato. Era amiga querida de meu pai, também professor. Tenho ela guardada em um retrato quando foi madrinha, na formatura dele, na Faculdade de Filosofia. Disse-lhe, sem que ela acreditasse, da importância que teve na minha formação intelectual e política. As poucas qualidades que me ficaram, após o sacolejo na bateia do tempo, devo muito à grande figura humana e intelectual da professora Sílmia Sobreira. Soube, ultimamente, triste e ressabido, que o inverno da existência lhe chegou com seus relâmpagos e trovões e que ela, com saúde frágil e com lapsos de consciência, passa os dias longos, numa casa de repouso em Fortaleza.
Dificilmente estas palavras lhe chegarão para acalentar esses dias frios. Mas que, ao menos, fiquem como uma luz para as futuras gerações, em tempos que voltam a ser de raiva canina, de desamor, de ódio e de sanha criminosa. Talvez o que nos faltem hoje seja justamente Luminares nos horizontes do país, daqueles que, como luas e sóis têm a capacidade de iluminar a terra e afastar-nos dos penhascos, dos icebergs e dos abismos. Uma cintilação como a da professora querida Maria Sílmia Sobreira da Silveira.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri