O coração descansava há 188 anos e era um órgão ainda lépido e jovem, de apenas 35 anos, quando resolveu encerrar sua jornada no Palácio de Queluz. A juventude, no entanto, não dizia muito das suas vicissitudes, das suas emoções múltiplas, num tão curto intervalo de tempo. A vida tinha sido curta, mas as artes longas. Transbordara de paixões por incontáveis rabos de saia: Noémy, Leopoldina, Domitila, Amélia, Ana Augusta… Viu, ainda, o mesmo coração disparar enfrentando as artimanhas políticas da corte, as palpitações inevitáveis que se seguiram ao Grito do Ipiranga, as Revoltas Libertárias pela Independência e República, as confusões da Constituição de 1824, a renúncia de 1832 e a guerra contra a usurpação do trono português por parte do irmão Miguel. Mal teve tempo de descansar com os louros da vitória: dois anos depois, a tuberculose tolheria uma existência tão meteórica e tão palpitante. Desde aquele dia em que fechava o ciclo vital no mesmo Palácio que o viu nascer, por pedido do seu dono, o corpo seria inumado em Lisboa, mas o coração lhe seria sacado do peito e levado para o Porto, cidade que lhe dera todo apoio nas escaramuças contra Miguel e pela qual manteve sempre intensa veneração. Em 1972, na comemoração dos 150 anos da Independência, o corpo seria trazido, definitivamente, para o Brasil, onde repousa, no Monumento da Independência do Brasil em São Paulo, junto com os de D. Leopoldina e D. Amélia.
No último dia 22, o coração, apartado do corpo há quase dois séculos, chegou ao Brasil. Foi recebido com honras de chefe de estado, nas comemorações do bicentenário do Grito do Ipiranga. Deve ter se espantado com as mudanças no país que ajudou a construir. Cidades enormes, trânsito caótico, ruas tomadas por carros e aviões cruzando os céus, um formigueiro de pessoas por todos os buracos dessa terra. Apesar de tantas transformações, muitas cenas, porém lhe pareceram muito familiares. A escravidão que se pensava abolida, apenas vestiu roupas mais modernas: está presente no subemprego, no trabalho infantil, no trabalho escravo, na informalidade. Como dantes, uma pequena casta se faz comensal das benesses terrestres, a grande maioria, continua sentada debaixo da mesa, esperando as migalhas que sobram e caem dos banquetes. A voracidade dos políticos que se apinharam para vê-lo, em Brasília, não é nem um pouco menor daquela com que conviveu, diuturnamente, com os cortesãos na Quinta da Boa Vista. E os bobos da corte se multiplicaram. A Independência, percebe o coração do alto de seus átrios, continua apenas uma figura de retórica. Bons tempos aqueles da Derrama, onde apenas 20% da produção brasileira ia para Portugal! E o coração quase volta a bater novamente quando percebe presente ainda no Brasil um sonho de Monarquia Absolutista, aquele mesmo que embalou os seus anseios constituintes em 1824 e que assombraram seus últimos dias na luta usurpadora do irmão Miguel.
Ainda apartado do corpo, o coração, retornará no dia 08 de setembro, novamente, ao Porto. Talvez volte mais conformado com o esquartejamento proposital que, aqui, descobriu não ser um apanágio apenas seu. O Brasil parece ter se assoberbado das aspirações do seu primeiro Imperador. Aqui ele deixou um país igualmente retalhado. Um Sul rico e influente, um Norte pobre e esquecido. Uma pequena casta vivendo em mansões, uma grande população sobrevivendo nas ruas, favelas e viadutos. Os bacanas nos SPAS e os famintos nos lixões. Os que são alvo e levam os balaços e os que praticam nos estandes de tiro. Os que suplicam milagres e aqueles que os vendem pelo Pix ou a prazo. Os campos cobertos de grãos e a população passando fome. Um fio de ódio corre nas veias dos brasileiros, como se não fizessem parte de uma mesma nação. Como nosso primeiro Imperador, o corpo e o coração do Brasil estão enterrados em diferentes campos santos. Que o coração de D. Pedro continue adormecido em berço esplêndido como o Brasil!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri