Honorina chega ao cemitério no Dia de Finados. Leva de um lado Franskim, o neto de seis anos. O menino veio por uma causa imperiosa: a avó não tinha com quem deixá-lo. Recebera-o como herança da filha que, na justificativa da própria mãe, cometera “um erro”. Franskim foi recebido meio a contragosto, mas aos poucos tornou-se a fresta de luz na casa escura da avó. É que ela convivia com alguns achaques típicos da velhice: a solidão, a aposentadoria de um salário mínimo e a viuvez. O guri, com suas peraltices e sua vitalidade de rolamento, transformou a casa da avó num parque de diversões. Se por um lado trouxe a luz que faltava aos dias nevoentos de Honorina, muitas vezes ofuscava-a pelo excesso de luminosidade. Ultrapassada a sétima década, ela já estava mais afeita à valsa do que ao frevo e o bulício do neto contrastava com o silêncio e a paz que um dia sonhara para sua velhice.
Tardezinha, o cemitério estava apinhado de gente. À entrada vendedores ofereciam flores e velas para quem chegasse, com a mesma alegria de quem vendia picolé ou Cavaco Chinês.
— “Faça um defunto feliz! Compre vela São Luiz!”
— “De uma flor pra seu bem querer! Hoje é ele o finado, amanhã será você!”
Honorina, cuidando de Franskim, para ele não se perder na multidão, adquiriu uma caixinha de velas e uma outra de fósforos. Seguiu, calmamente, cruzando as vielas mal definidas do Campo Santo, à procura do túmulo do marido. Encontrou-o, finalmente, já nas últimas lápides, próximo ao muro que o separava da rua do fundo. Ali, também, pensou consigo, não era tão diferente deste mundo de cá. Havia sepulturas de primeira, segunda e terceira classes. Algumas suntuosas como palácios e castelos, outras resumiam-se apenas a uma cruz tosca e um nome pintado com data de nascimento e partida. Abaixo da terra, no entanto, as acomodações eram idênticas, o pó não possui castas: Brâmanes e Dalits dividem o mesmo latifúndio do Nada. Hororina observou, ainda: havia jazigos suntuosos que pareciam abandonados, sem sinais de visitação antiga ou recente. Outros paupérrimos estavam brilhando atulhadas de flores e velas incandescentes. A saudade e a lembrança, aparentemente, não se guiavam apenas pela economia. A marca que cada um escreve neste lado de cá não parece utilizar as tintas voláteis da grana e do poder, tatuamos os corações com os pincéis da solidariedade, do amor e da bondade.
No meio daquele alvoroço de velas, balbucio de orações, flores e pessoas que circulavam como que perdidas, Franskim parecia o mais ariado dos mortais. Olhava de um lado para outro sem compreender bem do que se tratava. Honorina aproximou-se da tumba do marido e acendeu, pacientemente, as velas que iam se apagando, facilmente, com o soprar da brisa. O menino quis saber o que era aquele pequeno terreno, separado por uma cercazinha mal enjambrada, com uma cruz fincada na parte superior. A avó , explicou de forma mais leve:
— “Seu avô, Franskim, agora tá descansando aqui!”
— “Aqui, vó? E ele tá doido é? Um fim de mundo desse, com essa ruma de gente… tem lá quem descanse! Oxe!”
Honorina não quis encompridar conversa e começou logo a mastigar a primeira ave-maria. Mas já no “Bendita sois vós…” foi interrompida por Franskim. O moleque viu um túmulo de frente com um Cordeiro de Deus no cimo e quis, imediatamente, saber:
— “Vó ali , debaixo daquele borrego, tá descansando é um fazendeiro, é?”
A avó se exasperou :
— “Menino deixa de tanta pergunta, tu num deixa nem eu rezar ! Ah misera!”
O terço continuou a ser debulhado, mas no segundo mistério, no “Ó meu Jesus perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno…” Franskim atacou outra pergunta. No mausoléu vizinho, todo em mármore, com peças reluzentes de metal, vários parentes do morto puxavam uma reza, em coro. Temendo o roubo frequente das placas de mármore e dos adereços em dourados, tinham envolto toda campa com grades de ferro. O garoto, então, concluiu fácil, para o desespero da avó e a cara feia dos familiares do moço dono do túmulo gradeado:
— “Vó! E ali na frente?! Quem tá descansando detrás das grades, é um bandido, é? Ele continua no xilindró? Assim na terra como no céu?”
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri