Umbilino nascera ali naquele oco de mundo, umas duas léguas pra lá do Barreiro Grande. Acostumara-se àquela vidinha na serra, embalado por trinado de grilo à noite e despertares movidos a canto de galo. O sustento estava bem ali ao alcance da mão: o pequi que lhe caía oferecido no quintal, a mangaba que rolava solta e madura pelas trilhas, o araticum que se esparramava à sua frente. Da Casa de Farinha próxima vinha a farinha e o beiju que negociara, em escambo, com a mandioca que plantava num rocinha pequena, dessas que anum tira dum voo. Uma rapadurazinha, por vezes, era importada de algum engenho do pé de serra. O mais Umbilino conseguia fácil, fácil, com sua soca-soca afinada na mira de jacus e rolinhas e o cachorro “Cruvina”, um perseguidor implacável de tatus, cutias e preás. Umbilino herdara aquelas artes dos avós, coletores e caçadores cariris, que, um dia, foram donos de todo aquele mundão a se perder de vista.
Aquela vidinha mansa e modorrenta, nos últimos tempos, viu-se quebrada pelas fiscalizações do IBAMA. A Polícia Ambiental agora é que caçava os caçadores de serra adentro e Umbilino soubera de mais de um amigo e parente que terminaram enjaulados, como preá em fojo, por ser flagrado com espingarda e cachorro no meio do mato ou com o produto de alguma caça no embornal. Já tinham lhe dito que, sendo morador da floresta, era-lhe dado o direito de caçar para sua sobrevivência, mas daí a provar que ali morava, sem ter comprovante de residência, era coisa pra mais de um mês de xilindró, assalto de advogado e cipoada no lombo pra ir tomando tento, enquanto providenciava a documentação comprobatória. Os moradores da serra viviam nesse sobressalto, tranquilizava-os apenas a certeza de que os fiscais eram quatro gatos pingados e a probabilidade do flagrante delito raríssima. Mas, mesmo assim, andavam temerosos e relutantes como pastor esperando CPI. Não bastasse a caipora e suas exigências tabagísticas, agora, mais essa! Naldo Caititu, caçador profissional, já lhe adiantara que de bicho de mato o único permitido matar era um tal de Lázaro. Tirante ele, o resto dá BO!
Umbilino saiu de noitinha com Cruvina, atrás de pegar um tatu para o almoço do dia seguinte. Acreditou que naquele horário de sombras , com volta prevista para a madrugada amanhecente, estaria livre dos fiscais. Cruvina acuou um tatu e ele levou metade da noite cavando o buraco, a luz de lamparina, até pegar a caça. Imobilizou-a juntando, com um cordão, as duas abas da sua carapuça e o impedindo de botar a cabeça de fora. Voltava todo serelepe quando deu de cara com um teju, filosofando em cima de um tronco caído de árvore, quando os raios do sol já lancetavam a chapada. Mirou e, quando a espoleta voou, viu o lagarto se contorcendo, foi lá e o pegou, ainda baleado. Tomou o caminho de volta à casa, feliz e realizado. Tinha almoço e janta garantidos para os próximos dois dias. Cruvina, satisfeito, ia na frente como batedor, abanando o rabo. Esqueceu que alegria de pobre dura pouco, na próxima dobra da vereda, deu com três fiscais com roupa do ICMBIO que tinham vindo apagar um incêndio que iniciara na encosta, ainda na noite.
Umbilino ainda tentou, mas não existia rota de fuga. Os homens o cercaram, imediatamente, certos do flagrante delito de crime ambiental. Uma espingarda, um cachorro, um bornal com munição, um tatu debaixo de um braço e um teju no outro. Umbilino percebeu que estava em maus lençóis.
— Você está preso, cabra! Não sabe que é proibido caçar na FLONA?
— Caçar, tá doido é seu guarda? Eu não tô caçando, não!
— E essa espingarda e bornal é pra quê? Você foi convocado pra guerra, foi?
— Oxe! Tô levando pra um amigo meu ali no Barreiro Grande, Chico Kelé, ele pediu emprestado disse que alguém jurou ele de morte e me pediu a espingarda e a munição. Tô vendo a hora acontecer um estrupício!
— E o cachorro, tu usa pra quê, seu engraçadinho?
— Cruvina? Ah, seu guarda, é que eu tô com catarata, ando meio cego, e de manhãzinha é pior. Cruvina é meu guia!
— E esse Teju, debaixo do braço? Não me diga que é de estimação!
— Vixe! Parece que tu adivinha! Ele só anda comigo. Vou botar aqui no chão pro senhor ver, quando a gente sair daqui ele vem atrás! O bichinho é ensinado.
Umbilino colocou o teju no chão e, o bicho solto, embora baleado, entrou na mata em desabalada carreira, jogando folha seca pra tudo quanto é lado.
— E o tatu? Também é de estimação? Quis saber o guarda.
— O pobrezinho tá morrendo de medo, o senhor não percebeu não? Eu vinha andando despreocupado e Cruvina, ardiloso, acuou ele. Ele, com medo, correu e pulou nos meus braços o coitadinho!
— Foi, é? E o teju ensinado , cadê? Estuma ele! Quero ver se ele volta!
— Teju, teju? Que teju seu guarda? Eu não vi nenhum teju por aqui não! E nem adiantava chamar! O bicho é moco, né?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri