Estamos chegando no finalzinho deste ano e sempre nos bate aquela sensação de que fechamos mais um ciclo. Parece que fechamos uma porta do ano de 2022 e abrimos uma outra para um novo prenhe de oportunidades e perspectivas. Talvez tudo isso nos advenha dos marcadores cíclicos da natureza: a alternância da noite e do dia, a mutabilidade das estações e dos solstícios de verão e inverno. Nossos circuitos internos, como o pêndulo de um relógio, marcam também, em nós, fases e etapas da nossa vitalidade. Como a árvore que brota da semente, cresce, floresce esplendidamente por múltiplas florações e, um dia, por fim, fenece, entendemos, num simples olhar ao derredor, que o nosso trajeto vital segue um alternar de estações, como a natureza onde estamos inseridos. Como um rio, no entanto, apesar das marolas, das quedas em cachoeiras, da placidez corrente das planícies, as águas continuam fluindo da nascente para a foz, num movimento incessante em moto contínuo.
Assim, a mudança dos anos é apenas uma mera convenção criada por nós mesmos. A perspectiva de que a porta de 2023 nos vá dar acesso a um novo Shangri-lá, ao paraíso sonhado, à irmandade entre os povos, à ascensão que tanto sonhamos, ao peso ideal que almejamos, é um puro devaneio onírico. A linha contínua do tempo, basta observar bem, não possui portas ou janelas, e é sempre impossível prever o que nos espera na próxima curva do rio. Cachoeira? Remanso? Uma baía fluvial de águas tépidas? O desejo de melhor navegabilidade na esquina que quebra à nossa frente acalma-nos a nós e a nossos outros companheiros na viagem, mas não muda a sucessão de acidentes e paisagens que nos esperam, imutáveis, nos próximos passos do curso da existência.
Mas já que criamos a porta que, aparentemente, separa os anos, que podemos enfim fazer para que os jardins que se abrirão com o ranger da porta, sejam mais floridos e brilhantes do que os que deixamos para trás? Não podemos mudar o curso do rio que, inevitavelmente correrá da nascente para a foz, com suas tormentas e acidentes desconhecidos mas demarcados. Podemos, no entanto, mudar a nós mesmos, para tornar a viagem mais prazerosa e mais suportável diante das intempéries que, certamente, virão. É possível melhorar a convivência com nossos companheiros de percurso que, com certeza, mesmo navegando em outras embarcações, estão junto a nós por um maravilhoso acaso, dividindo conosco a mesma travessia, o mesmo espetáculo, as mesmas alegrias e tristezas da excursão. É também importante que cuidemos dos detalhes e bebamos, sofregamente, todo o cenário mágico que irá se descortinando, à nossa volta, pouco a pouco, vezes em câmara lenta, vezes em carrossel. Ele nunca mais se repetirá com as mesmas nuances, durante todo o trajeto. E, principalmente, precisamos compreender, para que entendamos a essência do rio, que tudo que irá sendo pouco a pouco nos oferecido – nuvens, árvores, pássaros, flores, folhas, frutos, o sol brilhante do dia e a luz prateada da noite — tudo isso faz parte indissociável de um todo. Sem a soma de todas essas parcelas, não existe o rio e não existimos nós.
Que 2023 abra, então, essa porta verdadeira. Aquela que se escancara não para o futuro imprevisível do rio, mas para as paisagens ainda escuras e obnubiladas de nós mesmos. Que consigamos viajar solidariamente com aqueles que conosco compartilham a mesma peregrinação, dividindo com todos os atropelos e prazeres do itinerário. O preço de fazer adernar outras embarcações é sempre pago com moedas de solidão. Se todas as naus estão fadadas a soçobrarem durante a travessia, o que vale, em efeito, é curtir cada uma das voltas do rio. Que esta também seja uma porta a ser descerrada no próximo ano. E, por fim, fechadas as últimas portas com redemoinhos e procelas, que coloquemos novos ferrolhos e cadeados, nas quatro últimas, para que não vazem para 2023 e os próximos portais, os afluentes pútridos de esgotos que desaguaram no nosso rio, ultimamente. Que, a partir de agora, possamos rir enquanto o rio flui!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri