O senhor deve saber o que é a vida. E das coisas que ela nos desvela com seus despautérios indeléveis. Sabedor dessas coisas que todos deveriam saber, desde pirrototinho, eu aprendi cedo, e cedo compreendendo, também fui pegando as varedas e desvios desses percalços que deixa qualquer um sem pai sem mãe. O senhor vai entender.
Pois bem. Aconteceu de eu muito cedo, achar de me envolver com uma tal de Maria Calamidade, mulher fogosa de seus trinta e poucos anos. Na vida, sabedora de muita coisa, na arte de fazer um caba véi se arrombar era mestra. E não pensava nem metade de uma vez pra realizar o malintento. De maneira que eu sendo ainda molecote, sem experiência, achei de me envolver com essa tal. De primeiro se falava que ela puxara a mãe. Também desse naipo de gente que faz homem besta sofrer. O senhor deve de saber algo sobre.
Eu nem liguei, tava tendo o que todo rapazote de 18 anos desejava. E barato! Achava eu. Mas certas pagas não se medem com dinheiro. E o preço que paguei foi deveras alto. Trabalhadorzinho que eu era, não via nada demais sustentar a mulher que me proporcionava tais lições. Foi coisa de dois meses pra ela me pegar de jeito. De início atenciosa e dedicada. Na cama não me dava espaço nem sossego, e o viço que é natural em árvore nova, todas as noites fazia o tronco da minha mostrar-se mais firme. O senhor me perdoe a maledicência.
Fui conquistado. Ou melhor, pensava ter conquistado a condição de senhor daquela sesmaria. E todas as atenções eram pra mim. De forma que passei a ser o Senhor em poucos dias. De mim emanavam as vontades. E a danada também era o demônio na cozinha. E tão bem entendia de me fazer satisfeito com sua guloseimas que entendi está eu no paraíso. Carinhosa, como uma mãe, cozinheira como uma tia Anastácia, na cama, uma mãe de Pantana. O que eu ia querer mais? O Senhor entende?
Mas a salve rainha nos diz claramente e muito atento é quem desvenda as entrelinhas da oração, no início é “vida doçura esperança a nossa salve” e nos derradeiros “a vós suspirando gemendo e chorando nesse vale de lágrimas”. Parece anedota, mas é o que se diz por entre os povos de todo canto, desses confins do pé de serra ao sertão, de todo o tempo percorrido desde os princípios antes do pai do pai do meu pai, até aqui nessa nossa prosa. O senhor acredita nisso!?
Então, nos meses que antecederam os meus suspiros, gemidos e choro, me deitei em cama boa. E a minha vida era um doce que me alimentava as esperanças de um amanhã safroso. Achei de sonhar com uma casinha bonita com um terreirão barrido com cacho de coco morondongo sem fruto. Uma beleza! E as crianças correndo, brincando de tudo que é arte. Sonhei com crianças arteiras. Ora! Fui eu menino arteiro nos meus tempos de pirrototinho. Meu pai dizia aos amigos que eu era menino travesso. Na raiva entonava a voz diferente e dizia: “esse menino num vale merda!”. Pois bem, esse meu sonho de ser pai, e essa casa dos meus sonhos com terreiro barrido foi mais que suficiente para provocar a mudança. Trágica mudança em Maria. O senhor a de me entender.
Maria apesar de seus dotes culinários e sua organização em casa sempre arrumadinha, não nascera pra ser mãe. O que ela queria é ser Senhora. Não senhora por ser casada que matrimônio não era da lista de exigência de Maria. Queria ser Senhora de mim. Que meninada que nada. Desde o dia que contei a Maria das minhas vontades, esta mulher deu um sobressalto e me gritou uns descalabros! Que não era mulher praquilo, que não nascera pra ter menino que nem mulher de agregado, que estava naquela idade sem ter um filho, estava implícito que era porque não desejava. O senhor acha que eu deveria sustentar aquela ideia?
Eu também não! Não falei nada! Até já tinha desistido. Mas tive que pagar preço alto pelo meu sonho. Aliás, por ter dito. Um adágio jurisprudente que ouvi do Dr. Daniel Costa diz que pensamento não é crime. Conclui por minha conta e risco que sonho também não era. E não era mesmo. Muito tempo depois o Dr. Costa me disse que pensar não, mas se falar, a depender do que seja, passa a ser crime. De forma que meu crime foi ter anunciado aquele meu sonho. O que me diz?
Pois é! De uma só vez tornei-me um criminoso e perdi a Maria!? Se passar um sem número de noites sem dormir direito for pena para criminoso, essa foi a minha pena. Não dormia. Pior! Maria deixou de ser pra mim tudo aquilo que a fazia a mulher perfeita para qualquer homem nessa terra. Carinhos não tinha mais. Cozinhar nem pra ver. Quando inventava fazia qualquer manzape que desagradava ao mais faminto dos seres sobre este sertão. E a gente sabe que fome é o tempero do faminto. Nem é preciso falar que perdi aquela mulher fogosa de outrora. Perdi perdendo. O senhor me acredita nisso!?
A mudança foi de maneira que a minha vida desandou. Não deixei de trabalhar porque não era do meu feitio, na minha família desgosto é motivo pra tudo, mas trabalhar é obrigação de quem tem moral. Era o que dizia meu velho pai. E eu passava o dia na lida pesada. E se antes desejava o fim do cerão pra ir pra casa ficar com Maria e comer aquele baião de dois com um toicinho torrado em riba. Agora, por mim um dia podia ter três tardes seguidas que era eu indiferente. Imagine o Senhor!
Mas há males que vêm pra bem. Não é isso? Aquela mudança em Maria me fez trabalhar que nem escravo colonial. E como não tinha ânimo pra procurar farras ou diversão, acabei por economizar um dinheiro bom. Que banco que nada!!! Meu dinheiro era guardado aos cuidados de Maria. E como tinha eu o intento de reconquistá-la, achei que confiando-lhe os meus numerários, haveria de tê-la de volta. O Senhor acha que fiz certo!?
Pois não fiz. Explico. Ao cabo de quase um ano depois daquela conversa que me atrapalhou a vida. Nada mudou. Maria era a mesma de depois da conversa. E reprimia minha falta trabalhando como condenado. Como disse antes, acumulei um dinheiro até bom. Maria era a guardadora desses frutos do meu esforço compensatório. Certo dia, era mês de agosto. Ô meisinho danado! Não é à toa que dizem que é o mês dos gostos e dos desgostos. O Senhor me acredita que chegando eu à boquinha da noite em casa, achei tudo calmo, luzes apagadas, tudo arrumadinho. Procurei Maria pelos vão da casa, sai pela cozinha, no fogão que ainda subia uma fumaçazinha de brasa de lenha, misturada a um cheiro de bode cozido que eu gostava, uma panela de baião de dois com pequi e queijo. Fui até o quintal, e nada da mulher. O que o Senhor pensaria?
Eu também pensei isso. Minha Maria voltara. E deixara tudo no jeito. Casa arrumada como há muito não se via. Comida cheirosa. Até a marmita de café ao lado com água pronta pra ir ao fogo que só gosto de café quentinho feito na hora. E eu haveria de pensar outra coisa. Se o quarto tava no jeito. A cama arrumadinha. Ôxe! Eu fiquei foi muito do feliz. E corri até o riachinho, pensando na sem vergonhice toda do mundo se Maria tivesse por lá. Fui aos pulos. Dei com os burro n`água, literalmente. Ela não tava lá. Mas me deixou uma pista de que a noite parece que ia ser inesquecível. O que o senhor pensaria?
Isso mesmo! Tomei um banho caprichado. Lembrei até dos banhos que tomava quando criança sob a observância de minha mãe. Passa a bucha de melão nas costas, esfrega aqui, esfrega ali, esfrega os pés na pedra. Peguei o sabonete que deixo sempre escondido numa moita de cidreira braba. Sabonete que trouxe da rua outro dia, um pra eu e cinco pra Maria. Maria era muito asseada. Tomava três quatro banhos por dia. Tomei banho como um noivo que à noite vai ter suas primeiras núpcias. Banho demorado. O senhor acha que devia ter feito diferente?
Não acho. Eu tava certo do meu retorno ao lar de outrora. Com minha Maria, esposa, amante, senhora. Meu coração acelerou como nunca antes havia feito. E eu voltei pra casa cantarolando uma cantiga apaixonada dessas que falam da lua, de sabiá e de cabana. Eu me sentia o cantador daqueles versos, voltando pra minha cabana. Como o senhor se sentiria?
Acredito. Chegando lá, Maria ainda não tinha voltado. E eu coloquei minha janta, ora, a vida me fez agreste. E assim sendo tem coisas que não mudam. Tava com fome. Comi. Parecia que tava com a fome canina. Repeti. E repeti de novo. Depois, fiz eu mesmo o café que já tava acostumado depois da mudança de Maria. E ela nada de chegar. De repente, sinto entrar pela janela, de maneira tímida, a pequena cortinava da janela também anunciava sua chegada e tocando na minha face, um ventinho frio que há dias não ocorria no sertão. Era Maria se despedindo de mim. Aquele vento fez cair sobre mim o peso da compreensão do que tava ocorrendo. Terminei o café. Tomei o quente, mas nem percebi. Um sentimento de pequenez tomou conta de mim. E pela primeira vez chorei um choro de homem. O senhor me acredita?
Ainda hoje não me esqueci. A dor do abandono é ruim. Não desejo pra meu pior inimigo. Senti-me uma criança indefesa e abandonada pela mãe. Ou um rapazote filho de agregado que perde a primeira namoradinha pra o dono da fazenda. Há tantas coisas ruins que eu compararia a dor que senti. Sabe como ela fez?
Depois daquele bom tempo guardando o dinheiro da minha lida diária. Maria arrumou um pé de meia razoável. E como eu saía muito cedo pra lida, ela levantou também cedo e começou a arrumar a casa. Depois cuidou da comida. Eu não almoçava em casa mas na casa grande com o patrão e os outros trabalhadores. De forma que ela teve todo o tempo do mundo pra preparar tudo. Isso que estou contando agora quem me falou foi dona Filomena, antes de ir ao vilarejo pegar o caminhão de Zé de Telvina até à cidade, Maria teve o cuidado de falar tudo à dona Filó. Achei uma atitude justa. O senhor, o que diz?
Maria disse ainda que não tinha destino certo. Que eu não fosse procura-la. Que sendo jovem tinha mais futuro com uma moça da minha idade. Que a vida não tinha dado certo pra nós, melhor não insistir. Que lembrasse dela como uma coisa boa… Acredita que Maria me fez sentir culpado pela nossa separação. Talvez tenha sido o tom de voz de dona Filó me contando tudo. O que dona Filó não me contou, que deveria ter contado. O senhor é capaz de arriscar?
Não, não foi isso! Se fosse eu estaria aqui contando ao senhor com um ódio danado. Veja que estou contando tranquilo. Não que a vida para mim tenha mudado. Como a própria Maria disse, “eu tinha futuro”. O que me faz falar de Maria com essa misturada de sentimentos contraditórios não é o bem que ela me deu durante aquele tempo. Ou o mal que me fez quando me deixou. O que me faz falar de mal de Maria, quando às vezes falo, não foi traição não senhor. Assim também como o que me faz falar de bem de Maria não foi o amor que ela me deu. Tampouco as comidas que ela me fazia. Ou as sem vergonhices que sabia e praticava comigo. Não senhor, não foi nada disso.
O que me faz guardar essas lembranças misturadas de Maria é saber que ela não me deu um filho não foi porque não quis. Maria tinha quase tudo para ser uma grande mãe. De forma que que não me deu o filho não foi por não deseja-lo também. Maria não me deu um filho não porque não fosse capaz de criar um filho ou porque tinha medo de deformar-se. Maria não me deu um filho, ou melhor, não nos deu um filho. Porque Maria era gora como dizem no sertão. Estéril. O senhor compreende?
– Deveras!!!
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri