Alvoroço! O arruado pretensiosamente se chamava Vila Alegria e estava fincado na zona rural, umas duas léguas para lá de Matozinho. Eram vinte casinhas, a maior parte de taipa, perfiladas em formato de rua. Numa das extremidades, uma capelinha, de uma torre só, sob a proteção de São Roque, preenchida por uns trinta banquinhos comprados em Cabrobó. Uma única se sobressaía, construída de tijolo e coberta de telha: a residência de Zé Bernardo, D. Colatina e de seus nove filhos: uma escadinha que ia do menorzinho ainda de braço até à primogênita, Florzinha, de dez aninhos. O arruado tinha o nome de Alegria, mas, de tão pacato, talvez merecesse um outro epíteto: Vila da Paz. Aquele dia, no entanto, quebrara a rotina de mais de cinquenta anos. O povo estava afogueado como se saísse do Metrô de São Paulo. Uma agonia danada, parece que ia tirar a mãe da forca.
A razão de tanto vexame? Os pouco mais de cem viventes dali receberam a notícia de que Dom Pergentino Gründ, o bispo da capital, iria visitá-los naquela páscoa e fazer uma desobriga. A novidade chegou através do Padre Arcelino, o pároco de Matozinho. A máxima autoridade eclesiástica resolveu não visitar apenas a cidade, mas escolheu um pequeno distrito e a Vila da Alegria, talvez por conta do nome, foi a premiada. Desde que a notícia chegou naquelas brenhas, o povo não teve mais sossego. Dentro das parcas possibilidades, iniciaram uma verdadeira renovação: no vestiário, na cal das paredes, nos potes e canecos, nos borzeguins. A casa de Zé Bernardo e Colatina foi, por unanimidade, apontada como o salão de eventos para o almoço das autoridades. Aquilo trouxe uma responsabilidade a mais na vida até então tranquila do casal. À medida que o prazo se esvaía, a ansiedade se viu multiplicada. Providências se fizeram necessárias, além da dos outros viventes comuns da Alegria. Colatina comprou uma mesa de jantar maior, uma colcha de frivolité bonita para cobri-la e separou dez capões cevados para o almoço. No dia anterior, no entanto, descobriu uma falha imperdoável. Esquecera a toalha para colocar junto à bacia de lavagem das mãos. Zé Bernardo teve que correr às pressas para Matozinho e tomar emprestada uma bordada e bonita, de uma comadre remediada. Reuniu, depois, toda a récua de filhos e, como numa Ordem do Dia, passou as instruções, um verdadeiro Código de Posturas, para o comportamento no dia seguinte: nada de barulheira nem de danação; só almoçariam quando as autoridades terminassem; não era para ficar entrançando dentro de casa e, pedagogicamente, mostrou um cipó de mufumbo: qualquer estripulia, quando os padres forem embora, vocês vão conversar com esse cardeal aqui. E, principalmente, lembrou: não era para dar a entender que a toalha de enxugar as mãos foi emprestada, é pisa certa!
A Vila da Alegria, finalmente, fez jus ao nome. As ruas se encheram de gente das redondezas. D. Pergentino e o Padre Arcelino quase não acabam as confissões: uma fila maior que a do Bolsa Família. Dizem em Matozinho que à tardinha quando o bispo terminou as confissões gigantescas, se espreguiçou num canto da rua e sussurrou:
— Ô lugarzinho pra ter ladrão de bode! Vôte!
O almoço na casa dos Bernardo ocorreu tudo nos conformes. Apenas um contratempo. Enquanto as autoridades aguardavam o capão à cabidela, Lilico, o filho de cinco anos, ficou o tempo todo agarrado com a toalha, olhando, pesquisando, amaciando. Parecia sagui no visgo. Nem ligou para os olhos de Colatina que o fitavam com promessa de ajuste posterior. Nisso, uma Florzinha preocupada com o desenlace, como primogênita, correu, empurrou Lilico de lá aos berros:
— Saia daí, saia, seu teimoso! Tu, com esse chamego, vai terminar descobrindo pro povo que essa toalha foi emprestada!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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