A história da humanidade é marcada pelo conflito. As conquistas sociais, os retrocessos, as disputas e o contraditório recheiam as lutas por democracia e emancipação humana. É impossível narrar a história da humanidade sem corriqueiramente ter um leque de contextos em que interesses divergentes se encontram. Entretanto, existe e não por acaso, um discurso e uma tentativa de apagamento, como se fosse possível, do conflito e do contraditório.
A democracia não é um novelo de lá, macio e que podemos entrelaçar de pontos uniformes. Possivelmente democracia seja o inverso: espinhosa e cheia de pontos desalinhados. É um equívoco conceitual conceber a democracia sem considerar a realidade e os contextos políticos econômicos, culturais e sociais concretos.
A poesia pode ser construída conforme o nosso entendimento e querer, delimitamos o tipo de métrica, o conteúdo, escolhemos as palavras, enfim, deixamos a poesia com nossa feição, já democracia não é construída por uma ideia única, não é modelada fora da atmosfera da coletividade e está longe ser uma receita de padaria, onde basta ter os ingredientes exatos, as quantidades especificas e o preparo adequado.
A vida social é fruto de uma conectividade de aspectos da infraestrutura e superestrutura da sociedade, é a partir do cruzamento e da complexidade dos aspectos econômicos, culturais e políticos que a democracia é gestada.
Numa sociedade marcada pela luta de classes sociais distintas e antagônicas, constatação histórica e social e não uma invenção falaciosa da contemporaneidade, a democracia refletirá inegavelmente essas disputas de narrativas e de poder.
Portanto, o que seria uma gestão democrática e participativa? Para os entusiastas de compreensão romanceada de democracia, em que que os elementos da analise não se amparam na realidade objetiva, mas em idealizações, o caminho da gestão democrática e participativa é marcada pela harmonia, pela escuta e o diálogo. Para esses o contraditório, o divergente, a oposição, o conflito são elementos estranhos à democracia.
Essa compreensão equivocada de democracia é disseminada tanto no campo da direita como por alguns setores da esquerda e precisa ser combatida de forma frontal, para que os movimentos sociais se apropriem do sentido da sua existência histórica e política e para que os gestores ampliem o seu repertório de entendimento sobre democracia.
Os mecanismos de controle e participação social, como os conselhos setoriais, fruto da luta por democracia e emancipação humana, podem ser também, espaços de escuta e de diálogo do/entre o Poder Público e a Sociedade Civil, entretanto, é preciso deixar de desvirtuar e romantizar o conceito de gestão democrática e participativa. Gestão democrática e participativa pressupõe mecanismos de controle e participação social, o que consequentemente esbarra na disputa de narrativas, nas relações de poder, no conflito de interesses, no consenso e na desconformidade, descartar essa característica esboçada na luta de classes, é desprezar a realidade concreta e construir um falso ideário de democracia que serve para calar e atrofiar os mecanismos de controle e participação da sociedade.
Possibilitar que a sociedade civil, interferirá nos rumos das políticas públicas é um dos intentos que norteiam os princípios de uma gestão democrática e participativa e parir essa realidade não é algo harmonioso e simples, é um quebra-cabeça de uma matemática social que nunca esbarra numa conta exata.
Gestão democrática é acolher o divergente sem colocar cabrestos, é aprofundar o conflito de ideias para nascer uma nova realidade. A democracia não é um romance que a gente escreve como quer.
Por Alexandre Lucas. Pedagogo, integrante do Coletivo Camaradas e presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais do Crato/CE
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri