A questão se arrastava, em Matozinho, com aquela morosidade com que pirulito se dissolve em boca de velho. A administração de Sinderval Bandeira, também apelidado de Bandalheira, resolveu, inspirada nas Olimpíadas de Seul, implementar um campeonato de futebol em terras matozenses. O vitorioso teria direito a um troféu comprado, a preço de ouro, na capital e, também a prêmios extras: um balaio de passa-raivas e doze pares de chinelas currulepe. A primeira edição dos jogos contou com cinco times inscritos, todos eles da sede urbana da cidade. O vencedor foi o Clube Elite. Inscreveu-se, também, naquele primeiro ano, o Caçote Futebol Clube, um timezinho do Sítio Impinge de Gato, um lugar pobre e abandonado, já nas fronteira com o distrito de Bertioga. Os times da cidade entraram com um recurso, à época, alardeando um mal disfarçado preconceito. Não tinha sentido aqueles pés rapados da Impinge de Gato virem se misturar com a elite de Matozinho, inclusive os alunos do Ginásio Sinfrônio Arnaud, uma escola particular que tinha os alunos mais metidos caga-gomas da região: os filhos do prefeito; do presidente da Câmara Municipal, Beviláqua Menestrino, também conhecido como Bebé do Caixa 2; os filhos do padre Nicodemos; os rebentos do juiz conhecido por Luiz Tafarel, que diziam pegar mais bola, na função jurídica, que o goleiro da seleção; e muitos outros filhos de remediados da Vila. O certo é que em meio aos protestos, o prefeito resolveu proibir o Caçote de competir, sob a alegação furada de que o Sítio pertencia, verdadeiramente, ao distrito de Bertioga e não à cidade de Matozinho.
O problema é que na edição deste ano dos jogos, o Caçote, entendendo as dificuldades que enfrentaria, fez barulho, movimentou os sítios nos arredores do Impinge de Gato, os vereadores da zona rural, mostrando o preconceito a que estavam submetidos. Sinderval se viu, de repente, num fojo político. Computou os votos e, fácil, descobriu que perdia eleitores mais que o dobro se comparece com os da cidade. Resolveu, então, inscrever o Caçote Futebol Clube na disputa, mesmo a contragosto. As reclamações das outras equipes, principalmente do Elite Futebol Clube, do Ginásio Sinfrônio Arnaud, tranquilizava os filhinhos de papai dizendo que havia outras maneiras de beneficiá-los no torneio.
Sinfrônio esforçou-se, como prometeu, para virar o jogo. Comprou o juiz Esmerindo Bola de Meia, garantindo-lhe uma verbinha extra, pós competição. Calçou os bandeirinhas com promessas de empregos para filhos e apaniguados. Esqueceu-se, apenas, de combinar os resultados com a turma da Impinge de Gato. Os meninos viviam praticamente em concentração, jogando num campinho de várzea, quase que todo dia e o dia todo. Tinha ainda um jogador acima de todas as expectativas regionais, um centroavante desses que dissolvem defesas, rápido, impetuoso, um cabeceador perigoso e com um poderoso chute armado em qualquer um dos pés. Carregava um nome que lembrava o do uruguaio, terror do Brasil na Copa de 50: Deggia. Quando lhe perguntaram se havia algum parentesco, ele aclarava logo a questão. Nada! É que ele, magricelo, não tinha carne na bunda suficiente para encher um pastel e tinham lhe colocado o apelido de Cu de Gia que terminou abreviado socialmente para Deggia.
Aberto o campeonato, o Caçote começou a dizimar todas as equipes contrárias. Sempre com goleadas. Os bandeiras e Bola de Meia até que fizeram sua parte, mas a supremacia era tamanha que não houve jeito. Até porque o Caçote trazia junto uma torcida gigante e fiel que não engolia fácil as tramoias mal disfarçadas da arbitragem. A final do campeonato, com a ajuda imprescindível do juiz, caiu num domingo . Enfrentaram-se o Elite e o Caçote. Foi uma lavada do Caçote. O juiz decidiu suspender o jogo, que já estava em 6 a 0 para o Caçote, sob o pretexto de ia chover e não havia segurança para os jogadores por causa dos raios e trovões de estalo. Estranho porque era mês de outubro em Matozinho onde nunca nem garoou.
No dia seguinte, o Elite, em protesto, fechou com barricadas as ruas de Matozinho dizendo que tinha sido roubado, que se o jogo tivesse continuado teriam virado o placar. Tardezinha, a torcida do Caçote entrou de cidade adentro e o pau cantou. Nesta segunda partida, puxada mais para o boxe e MMA, ganharam outra vez de goleada. À noite, caras inchadas, enquanto lamentavam que na Impinge de Gato estivessem comemorando com cana de cabeça, com a Taça, de currulepes novas e mastigando passa-raivas, os jogadores do Elite ainda escutavam os gritos da TAC – Torcida Organizada Caçoteana, enquanto as partidas corriam soltas sob os dribles frenéticos de Deggia:
— No Cu da Elite, tá, tá tá! No Cu da Elite, tá, tá, tá!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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