Em Blumenau, quando as portas do shopping Neumarkt, do grupo Almeida Junior, reabriram as portas depois de um mês fechadas, os funcionários receberam o público com aplausos, em um grande espetáculo tardio do hipercapitalismo, música, euforia, e uma estranha sensação de vitória. No exato momento atual da pandemia esse é um estímulo para o gasto como forma sinistra de autoestima depravada. Muitos dos que estavam presentes são eleitores de Bolsonaro. Muitos serão infectados. No mesmo dia, em Manaus, valas comuns foram abertas para o sepultamento de mais de dez corpos de uma vez. Sem aplausos, somente ao som da fúria dos negacionistas, dos empreendedores, dos mercadores de almas.
Morrer solitariamente, mergulhado em um mar de ar que não lhe pertence mais, é muito diferente do que morrer pelas próprias mãos, mergulhado na lama da indignidade motivada por quem está do outro lado, confortavelmente instalado na arrogância, exercendo o direito sagrado da escravidão. Sem dúvidas que a morte é igual, mas em sua prática de extinção o que difere são as circunstâncias, as mesmas que diferem seres humanos de animais. De muitas formas a arquitetura da morte garante o espetáculo, sendo o sepultamento um rito de passagem da vida para a memória. Alguns afirmam que o trauma da perda é essencial para alimentar o desejo da vida. É o que fazem os que defendem salvar a economia de quinquilharias, em nome do futuro, em defesa da família, em nome de Deus, e em veneração pagã da propriedade, na sua forma mais decadente, mais apequenada possível.
As memórias desses barbarismos da vida pública e privada brasileira guardarão muitas derrocadas da essência humana. A forma como se constrói a reputação biltre do excremento administrativo do Brasil é a coisa mais monumental da vergonha brasileira. A primeira entrevista do novo ministro ideológico da saúde é mais do que simbólica, é o resumo vivo da perversidade das elites e do vampirismo terraplanista. Nelson Teich usa o mesmo escapulário ideológico de Mandetta e vomita as mesmas aberrações de qualquer um que esteja nessa gestão. Empresário do ramo da saúde, como Mandetta, e defensor da privatização da saúde pública, como Mandetta. Faz parte da ala nebulosa da máfia de branco, como Mandetta, e tantos médicos e médicas que defenderam Bolsonaro e fizeram arminha e ainda debocham da pobreza.
De fato o poder é o grande espetáculo. É o que faz o ser humano se transformar em alguns centímetros cúbicos de fezes. Ver e ouvir Nelson Teich justificar uma “saída estruturada e progressiva do isolamento”, a partir de uma manipulação inescrupulosa de dados, criando uma realidade mentirosa, na forma de ração para o gado, comparando o que está acontecendo no Brasil, que não atingiu o pico de infecção, com o que aconteceu na Europa que está passando o pico de infecção agora, é testemunhar o quanto pode ser maquiavélico um empreendedor da saúde. Nelson Teich está na pasta para fazer negócio, para ganhar dinheiro com a desgraça alheia, com a tragédia do pobre. Ele admite, como os nove governadores bolsolavistas que quebraram o isolamento social, que muitas pessoas irão morrer, que haverá o colapso da saúde pública, que haverá uma vala comum para os pobres, para os médicos pobres que atuam na saúde pública, e para a saúde pública. Sem aplausos, somente a satisfação do capital.
Não basta o pobre morrer sem ventilação. No calor da solução final bolsolavista o ministro Luiz Eduardo Ramos critica a imprensa por divulgar a verdade, fazendo um apelo aos jornalistas para que as notícias negativas sejam evitadas, para não criar uma imagem negativa do governo. É a asfixia da asfixia, morrer pode, mas tem que ficar no anonimato, no esquecimento, debaixo da dobra do tapete. Não basta o governo ser formado por uma gangue de salafrários mentirosos, agora o governo está pedindo educadamente que a imprensa também seja mentirosa e bandida, embora alguns segmentos da imprensa o sejam por natureza e puro patriotismo pachequista. O último exemplo do que é feito o gado, como ele se alimenta, qual é a composição da sua flatulência e como ele funciona, foi dado pelo ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, em um artigo do mais fino terraplanismo, que ele defende a tese do “comunavírus”. Se for para ser idiota e mentiroso, tem que ser com classe, de quinta categoria. Merece aplausos pela coragem de ser ideologicamente mais imbecil do que a própria imbecilidade.
Também não se pode deixar de aplaudir a blindagem feita pelo governo com o setor privado da saúde brasileira, criminosamente deixado de lado, sem ser recrutado para salvar vidas, sem se envolver no colapso dos equipamentos públicos. Vem da preservação de mercado a força de Bolsonaro em afirmar que não é coveiro, quando indagado por um jornalista morto na insignificância operante, sobre o número de mortes. Mais uma vez desdenhando da dor de quem perdeu um ente querido, que saiu da vida e entrou para a memória administrativa brasileira. Com certeza, diante da realidade paradoxal, entre a exaustão dos leitos de UTI dos equipamentos públicos e a vastidão silenciosa da oferta na rede particular, #Elenão pode ser considerado um coveiro, mas um contabilista das circunstâncias naturais, como Adolf Eichmann o foi.
Por Marcos Leonel – Escritor e cidadão do mundo
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