Os mais erados, como eu, devem lembrar do Coronel Ludugero, um grande comediante dos anos 60. O Coronel – personagem interpretado pelo caruaruense Luiz Jacinto da Silva – ficou famoso em todo Brasil junto com seu escadinha Otrope – o comediante Irandir Costa – que com ele contracenava, ambos encenando textos do grande escritor Luiz Queiroga. Queiroga é tio do compositor Lula Queiroga e da grande dama do frevo pernambucano, Nena Queiroga. O Coronel e Otrope faleceram, precocemente, num acidente aéreo, no Pará, em 1970, quando faziam shows de enorme sucesso Brasil afora. À época, trazendo um pouco de humor à tragédia, contou-se que Otrope, ao perceber a queda do avião, aflito, teria avisado a Ludugero: Coronel, danou-se! O avião tá caindo! E ele, na maior calma do mundo, teria retrucado: Qué que tu tem a ver com isso, Otrope! Deixa pra lá! O avião lá é teu?!
Tenho uma parenta que casou com um alemão e mora em uma cidade do interior da Alemanha. Numa das suas vindas ao Cariri, ela me falou sobre o choque cultural que se tem ao morar em outros países. Contou que, num fim de semana, estava em casa sozinha e, em pleno inverno, viu pela janela, um senhor idoso sair embriagado de um bar da vizinhança e, a caminho de casa, tropeçar e cair desacordado. Ela percebeu, rápido, o perigo. Ele ficou com o rosto dentro de uma poça d´água e era pleno inverno na Europa. Ela rápido correu de casa e socorreu-o, conseguindo virá-lo e afastar da poça que lhe trazia um risco imediato de morte. Ligou depois para a polícia que, prontamente, acudiu e transportou o velho para um hospital. Quando o esposo voltou do trabalho, contou-lhe a história, felicíssima pela boa ação. A reação dele, no entanto, foi inesperada. Deu-lhe a maior bronca! Devia ter ficado na dela, ela não era socorrista e não tinha nada que se meter com a vida alheia!
A primeira história é uma anedota, mas a segunda, um relato verdadeiro. Estão as duas separadas por quase cinquenta anos. Mas me parecem perfeitas para uma reflexão. À medida que a população das cidades cresceu e as vilas incharam junto com elas, as pessoas aos poucos foram deixando a comodidade da zona rural e se apinhando em pequenos lugares nas metrópoles. Esperava-se que, dividindo cada vez mais os pequenos espaços, aglomerando-se nas ruas, nos metrôs, nos ônibus, nos estádios, fossem ficando cada vez mais próximas e gregárias. Não foi isso que ocorreu. Continuam todos isolados nos seus pequenos nichos. Mesmo residindo numa metrópole , continuamos a dividir nosso cotidiano com familiares (cada vez mais resumidos) , poucos colegas de trabalho e um ou outro amigo. Mesmo a tecnologia abriu nossos espaços gregários só virtualmente: temos cinco mil amigos nas redes sociais, conversamos com grupos de WhatsApp, conectamo-nos com pessoas na Cochinchina, todos não passam, em verdade, de uma espécie de holograma. E, claro, para nós, o desaparecimento de qualquer um deles, nenhum impacto causa em nós. Não temos vínculos afetivos maiores. Cada qual na sua concha, cada um no seu casulo, perdemos, totalmente, a visão holística do mundo. De dentro do aquário, o peixinho acredita que aqueles vidros representam os limites do universo. Nem adianta avisá-lo de que uma explosão nuclear está próximo de destruir o mundo. Existe lá vida do outro lado do vidro?
Esta semana, na Lombardia italiana, a polícia foi alertada por vizinhos sobre o risco de uma árvore prestes a cair em um jardim. Lá encontraram dentro da casa, estranhamente fechada, uma senhora, Marinella Beretta, de 70 anos, mumificada em sua cadeira de rodas dentro de casa. Havia falecido há mais de 02 anos, sem que ninguém tivesse dado pela falta: um familiar, um amigo, o padeiro, o vendedor. Na Itália, é bom lembrar, mais de 70% dos idosos vivem sozinhos.
Um jornal italiano resumiu, com perfeição, o ocorrido: a grande tragédia não foi não terem percebido a sua morte, mas não terem notado que ela estava viva. Mas a quem interessava, não é? Afinal o avião não nos pertence!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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