“Quando se descobriu que informação era um negócio,
a verdade deixou de ser importante.”
Ryszard Kapuscinski
“Um repórter está sempre preocupado
com o amanhã.
Não há nada tangível no ontem.”
Edward R. Murrow
Uma notícia tomou de assalto o Cariri esta semana. O repórter cratense Chico José foi demitido da Rede Globo de Televisão. Os cratenses mostraram-se ressabiados com justas razões. Chico é uma lenda da reportagem de aventura no Brasil. Permaneceu na Globo por quase cinquenta anos e foi responsável por mais de cem reportagens no Globo Repórter. Varou os cinco continentes, mergulhou com tubarões, subiu montanhas e locais sagrados, viu-se diante de gorilas africanos hostis, dragões de Komodo, de elefantes marinhos na Patagônia, e onças ferozes na Amazônia. Pulou até de bungee jump, numa aventura que faria tremer os adolescentes mais adrenalinizados. Chico esteve nos Polos Norte e Sul. Em outubro último, gravou as belezas do Atol das Rocas. Destemido, em plena ditadura militar denunciou extermínio de indígenas, crime perpetrado oficialmente para possibilitar a abertura de estradas em áreas de reserva. Seu faro de repórter o fez acompanhar um sequestro em Recife, assumindo lugar de uma grávida sequestrada, colocando em risco premente a própria vida. Fez-se ainda repórter esportivo cobrindo duas copas do mundo e apresentou o Globo Esporte em Pernambuco. Chico levou o Nordeste para todo o Brasil: mostrou com galhardia o Carnaval pernambucano, tornou populares nacionalmente as festas juninas e denunciou a seca e a miséria que ainda perduram, como uma chaga, na nossa região, um genocídio que se arrasta por muitos anos e por muitos governos. Nosso repórter criou ainda uma série de reportagens sobre ações ambientais e preservacionistas no Nordeste, junto com a esposa, Beatriz Castro. Em 2013, Chico foi indicado a um Emmy Internacional por um Globo Repórter sobre a rotina e a ritualística dos índios amazônicos Enawenê-Nawê.
Todas estas peculiaridades foram detalhadas pelo diretor da Globo Ali Kamel, numa carta distribuída para todos os companheiros da empresa. Nas entrelinhas, percebia-se a tristeza em ter que se despedir de Chico, percebendo que uma parte da Globo, naquele dia, também ia junto. É que há um Chico José bem maior que o repórter famoso e destemido: o homem que se esconde atrás do jornalista. Chico é de um caráter a toda prova. Deixou de ser correspondente internacional, fugindo de reiterados convites. Nunca quis sair do Nordeste. Chico, também, negou-se a mudar se sotaque, sabia, perfeitamente, que se adotasse outra língua já não teria identidade: seria um mero boneco de ventríloquo. E a grandeza não para aí, ele tem orgulho de sua origem, é um cratense declarado, bairrista irresistível. Seu prato preferido, depois de ter provado iguarias de todo o planeta, pasmem vocês, continua sendo baião de dois com farofa e pequi. Na própria carta de despedida, Ali Kamel o chama: “Chico José, cearense do Crato”. E Chico sabe, perfeitamente, que aqui é sua Pasárgada, aqui ele é amigo do Rei. Mexer com ele é risco de eclodir uma nova Confederação do Equador.
Seus conterrâneos percebem que a coisa não deve andar muito bem na Vênus Platinada. A pindaíba é previsível. Afinal, na hora do aperto, desvencilham-nos, primeiramente, das joias, dos bens de maior valor. E é justamente o que vem acontecendo com a Globo nos últimos anos, com seguidas e incontáveis demissões das figuras mais icônicas do seu plantel. Alguns comentam que estão despachando os mais idosos e, numa reengenharia, trazendo juventude para a empresa. Mas todos sabem, claramente, que é justo o misto de fulgor juvenil com a experiência dos sêniores que traz a fortaleza de qualquer instituição. A Globo paga o preço de posicionamentos discutíveis e esdrúxulos, quando abandonou tantas vezes os campos da informação e adentrou na areia movediça da política, do partidarismo descarado e do golpismo desenfreado. O boleto acabou chegando para ser pago. Na liseira, as joias terminaram tendo que ir para as casas de penhora.
O grande problema não é Chico José ter sido dispensado pela Globo. Ele poderia muito bem, nestas alturas, dependurar o microfone e levar a vida à beira mar no balanço da rede. Mas o filho de seu Chico e D. Morena tem um frivião, como se diz por aqui. Incontáveis oportunidades já apareceram, no rádio, na TV, na produção audiovisual. Ele continuará nos brindando com suas proezas e reportagens. O grande problema, na realidade, é a Globo ter perdido Chico José.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri