Houve tempos em que a Páscoa não carregava esta atmosfera de chumbo e presságios dos dias de hoje. Mesmo com o roxo cobrindo as igrejas e o jejum imposto aos adultos, ficava-nos mais uma alegria de Sábado de Aleluia do que as trevas da sexta-feira. Claro que perpassava por tudo um certo travo e o fel que um dia escorreu do Gólgota, mas a meninada conseguia banhar de lúdico o cenário de tormenta. E a data ainda não tinha sido invadida ainda pelos coelhinhos e pelo chocolate e perdido seu clima sagrado.
As escolas feriavam por uma semana. Íamos para fazendas, com uma corriola de primos e amigos. O jogo da peteca era, então, o oficial. O caju era passado, de mão em mão, numa grande roda, no terreiro das casas. A Semana Santa trazia consigo, também, as chuvas tão escassas aqui pelo Nordeste. E, junto delas, as primícias que brotam da terra: o milho, a canjica, a pamonha. Os açudes cheios viravam, rápido, as piscinas olímpicas dos guris. Bodoques e baladeiras à mão, eles voltavam à condição natural de caçadores e coletores. À noite, à beira das fogueiras, retornavam aos ritos ancestrais, ouvindo histórias que se debulhavam ao crepitar do milho verde que assava sob o calor das brasas.
O que a meninada nem pressentia é que junto ardia, também, uma outra fogueira bem maior e que, pouco a pouco, iria estendendo suas chamas ao derredor. De repente, lamberia sua infância, incineraria personagens queridos como seus avós, tios e pais; faria em cinzas a roda de peteca, o cheiro adocicado do milho que escapava dos caldeirões. Restariam apenas cinzas esparsas de lembranças e o fel que passou a ser cada vez mais presente nas sextas-feiras.
Talvez a chama da vida se resuma nisso: o sonho, o sacrifício e a remota possibilidade de ressureição.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri