“Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.”
Olavo Bilac
Talvez seja o mais aterrador de todos nossos enigmas humanos. Aquele que angustia o homem desde as cavernas e que terminou por gerar incontáveis mitos e seus puxadinhos: as religiões. O enigma da Esfinge é esse e, independentemente de tua resposta, certa ou errada, ele sempre te devorará. A despeito de crenças, fatores econômicos, sociais, étnicos, de gênero, qualquer pessoa tem o direito de degustar apenas uma determinada fatia do bolo imenso do tempo. Viemos de um acaso totalmente desconhecido e, passados alguns anos, retornamos para a substância amorfa, inicial de onde proviemos. Diante desta perspectiva irremissível e difícil de digerir, postamo-nos a buscar saídas para a extinção certa e inflexível. A Ciência conseguiu esticar os anos de sobrevivência com novos medicamentos e tecnologia. A cirurgia plástica tenta maquiar o mofo dos anos, melhorando as aparências, como se apresentasse-nos a fonte de Ponce De Léon e sua Ilha de Bimini. Por sua vez, os místicos construíram outras dimensões possíveis para depois do extermínio, separaram-nos em corpo e alma, abrindo a possibilidade de um espírito imune ao desparecimento e, em alguns casos, até à contingência de retorno, já em outro invólucro, numa espécie de reciclagem. E alguns povos até tentaram preservar o corpo com processo de mumificação, na vã ilusão que o pó não voltaria ao pó e que a casca, como um pupa, serviria para outras metamorfoses.
A realidade, no entanto, é crua e difícil de engolir. Bonitos e feios, gordos e magras, humildes e orgulhosos, ricos e pobres, nobres ou plebeus, crentes ou ateus, no final do caminho nossos pós irão se misturar num só amálgama, impossível de se separar. No condomínio final que todos habitaremos não haverá muita diferença nas dependências e no conforto, seremos parte de uma mesma substância chamada Nada, aquela mesma que deu origem, um dia, a todo Universo. Diante da inevitabilidade do fim, postamo-nos, como os Egípcios e os Incas, na luta inglória contra o esquecimento. Já que a morte é inevitável e contamos, com certeza, apenas, deste ínfimo segundo que temos às mãos, pretendemos que ao menos nosso nome e nossa trajetória não sejam esquecidos. Outra leda batalha perdida! Alguns constroem obras faraônicas como as pirâmides, outros escrevem livros fabulosos, pintam quadros inesquecíveis e esculpem esculturas invejáveis, escrevem poemas e romances singulares, compõem músicas quase que divinas. Buscam quebrar, assim, a regra básica da vida limitada em anos e se perpetuarem através de suas realizações. Outra enorme falácia que nossa pretensão nos prega! O esquecimento total e irrestrito é uma regra imutável da existência. Seremos lembrados, na melhor das hipóteses, por alguns da nossa geração, por filhos e, no máximo, netos. A partir daí, alguns, talvez, recordarão um nome, não mais de uma pessoa com todas suas qualidades, defeitos e singularidades. Seremos, com sorte, tão-somente um totem, um simulacro. Podem permanecer algumas das nossas obras, se tocarem, com sua mágica, outras gerações que virão. Junto, se afortunados, ficará nosso nome numa rua, num prédio, numa placa, numa universidade, numa biblioteca, num Centro Cultural, num museu. Apenas um nome frio, junto com uma biografia insípida, uma mera paródia e arremedo daquilo que um dia fomos. Permanecerá, no máximo, uma caricatura, um busto numa praça como depósito para excremento de pombos. Só.
As duas extremidades da linha da vida, simplesmente, não nos pertencem: o berço e o caixão. Recebemos como uma dádiva. O intervalo esse, sim, é todo nosso, mas, mesmo assim, não temos nenhum controle sobre sua extensão. Numa travessia sempre tão cheia de altos e baixos, de retas e curvas, nunca sabemos em que esquina a “Velha da Foiçona” nos aguarda. Cabe-nos, todo dia, degustar a parte da estrada que nos é oferecida, como se fosse a última estação. Esse trechinho é tudo que nos cabe e, claro, a memória das etapas já percorridas que podem nos embalar as horas da viagem, mas que a só nós interessa e, conosco, ela evaporará quando dobrarmos a extrema curva do caminho extremo.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri