“Eu não caminho para o fim,
Eu caminho para as origens.”
Manoel de Barros
Os genealogistas adoram fuçar velhos livros empoeirados, em busca de entender suas origens. Não são diferentes dos seus ascendentes, nas cavernas, olhando para a imensidão do universo e articulando as perguntas eternas e irrespondíveis: Quem eu sou? De onde vim? Para onde vou? Aquelas mesmas interrogações que terminaram por criar as mitologias, as religiões e a Filosofia. Basta observar o suceder as gerações para se perceber que as muitas misturas e intersecções familiares reproduziram uma imensa diversidade, ficam em cada um de nós apenas pequenos traços dos nossos avós e bisavós : um riso, um temperamento, um tom de pele e de íris. Essas múltiplas formas do caleidoscópio da evolução agem no sentido da beleza e fortaleza da constituição humana.
Se a gente reparar direitinho, com a Cultura não é diferente. As manifestações culturais da nossa tradição (a música, a dança, as histórias) guardam a magia da nossa ancestralidade, mas se foram embebendo, de forma vívida, de incontáveis influências com o passar dos anos. O Cordel, o Reisado, o Maracatu, o Bumba-meu-boi que hoje vemos nas festas populares são bem diferentes daquelas que se brincavam nos Terreiros nos séculos anteriores. Foram impregnadas com novas cores e nuances, como qualquer objeto vivo. Como nas nossas histórias pessoais, restou comum apenas o DNA primitivo, aquele que mantém a codificação genética inicial e permanente da existência.
Essa reflexão bateu-me ontem, num momento de tristeza. O Cariri perdeu Mestre Vicente Aniceto, o Mestre Azul. Um viral pifeiro da mais ancestral Banda Cabaçal da região, a dos Irmãos Aniceto. Claro que a Banda, como qualquer ente vivo, sofreu as transformações inevitáveis com o passar dos ponteiros do relógio. Composta por pifes, caixas, triângulos e zabumbas, você pode imediatamente imaginar que aquela música que dela flui, não é a dos Índios Cariris. Sofreu, ao longo do tempo, a influxo da música da caserna, do batuque afro, das danças europeias. Assim como eu não sou o clone do meu bisavô, a Banda Cabaçal é a evolução cronológica daquele DNA primitivo que nasce com os Índios Cariris. Ou seja, ela nos reporta, imediatamente, com sua música e sua coreografia, para as inúmeras etapas evolutivas do Sul cearense. O desaparecimento do Mestre Vicente pesa em todos os caririenses, como se tivéssemos perdido o cacique ou o pajé da nossa tribo. Fica, no entanto, a certeza, que nossa tradição não se extingue com a sua partida, simplesmente pela capacidade dessa Cultura ressurgir e recriar-se a todo instante. Terminado o ritual do Quarup, a festa novamente voltará a fazer-se, com brilho renovado, no terreiro da Taba.
Grande Mestre Vicente Aniceto! De volta ao sol, nos braços de Tupã, lá de cima percebe que foi por causa dele que a terra, vista de longe, é todinha Azul.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri