“Quem contempla de longe a soberba Chapada,
Um mirante de luz desnudando a amplidão,
Nem percebe que Deus montou grão sobre grão,
Foi partindo do chão que encetou a escalada.
Para os homens também nada surge do nada,
Esse fruto que como, semearam bem antes,
Essa fonte em que bebo vem doutras vazantes,
E uma casa se erige é de velhos escombros.
Gerações elevaram uma torre de ombros
Pr´eu puder ver do cimo mais claro e distante.”
A Sociedade Anônima de Água e Esgoto do Crato (SAAEC) está completando sessenta anos. Entre as festividades comemorativas à efeméride, a diretoria estará inumando uma cápsula do tempo com depoimento de cratenses sobre a Chapada do Araripe. Pediram-me um texto em nome do Instituto Cultural do Cariri. Como muitos não estarão presentes, inclusive o autor, quando a cápsula for aberta daqui a mais sessenta anos, segue o texto para apreciação agora, antes que o apagador do tempo passe sua flanela no quadro negro da vida.
“Caririenses, emoldurados pela verde Chapada, nem percebem que a vida palpita e ruge do outro lado da montanha. O mesmo paredão, que aparentemente nos separa do resto do mundo, nos imprime um elã de pertencimento, como uma fortaleza que nos protegesse de invasões bárbaras e alienígenas. Talvez, por isso mesmo, não nos prende qualquer banzo da vida alhures. Basta-nos a sensação de que já nos banhamos nas salgadas ondas do mar, já provamos das dulcíssimas águas de um lago, já fomos planície e, hoje, serra. Andamos numa passarela imantada por muitas gerações de animais fabulosos, agora dormentes nos veios magmáticos das rochas, mas que nos magnetizam duma estranha energia primal. Basta fechar os olhos um pouquinho para contemplar, nos céus, os voos balouçantes dos últimos pterossauros.
Em meio à sequidão desértica do semiárido, a Chapada prendeu, caprichosamente, todo um rio sob seus pés. Um rio que corre entre pedras: Itaytera. Um caudal que escorre e se esparrama, como artérias, para nutrir, com sua seiva, toda a encosta ubérrima que se espraia, como um tapete, ladeira abaixo. Talvez, por isso mesmo, os caririenses comemorem esse milagre, essa dádiva, nas suas Saturnálias, nas suas Festas de Solstícios e nos seus Kuarups. Os espelhos e espadas do reisado, os tambores de crioula, os pífaros, o batuque do maracatu, a rabeca, o violão, a sanfona… O cratense carrega aquela placidez do transe, como se tivesse há pouco bebido o cauim e sintonizasse diretamente a estação Craterdam. E caririense não é um adjetivo gentílico, mas um estado de espírito, tantos e tantos, mundo afora, se sentem tocados da mesma energia cósmica, aquela força gravitacional explicada apenas nos tomos do esoterismo, e, imediatamente, recebem o visto de permanência, o Greencard, tornam-se Chapados: caririenses por adoção. Temos até uma fruta litúrgica, típica para nossos rituais de iniciação: o pequi. É uma epifania para o iniciado descobrir que para degustá-lo — e a lição serve também para a vida — é preciso lamber e mordiscar, voluptuosamente a polpa, mas sem cravar os dentes muito a fundo, ali onde a aranha teceu sua teia de espinhos.
Diante da imensidão da Chapada, descobrimos apenas que somos parte integrante e imanente dela. Não carece entender todos seus mistérios esfíngicos, tão-somente relaxar e curtir o transe. Para atingir os céus fez-se mister que o Senhor Tempo ajustasse placa sob placa do quebra cabeças. Incontáveis transmutações geológicas e biológicas aconteceram desde então: placas tectônicas se conflitaram, mares avançaram-recuaram, lagos e rios se formaram e muitas espécies se fizeram fósseis. A vida é sedimentar! Somos apenas a placa da vez. Mais alguns anos passados e eis-nos uma mera e fugidia lembrança de uma era. A Chapada do Araripe continuará impávida e firme na sua exuberância e nós viveremos nela como parte secreta mas indissociável do seu esplendor.”
José Flávio Pinheiro Vieira
Médico e escritor. Presidente do Instituto Cultural do Cariri