O almoço estava no armário, naquela sala, que servia de despensa, ao lado do banheiro. Sempre almoçava ali, nunca por preferência, mas por ordem mesmo. Comecei a achar que ali era o meu lugar mesmo, acreditava nisso sempre com desconfiança. Comer a gente poder comer em qualquer canto, basta ter fome, até sem fome, a gente come, só para não desperdiçar. Mas só eu comia ali, nem podia fazer meu prato, ao meio dia ele já estava no armário, nem comia direito, comia ligeiro, mas comia tudo. Comer direitinho é comer para sentir o gosto da vida e da comida. Comia era ligeiro para não ver cara feia, engolia tudo, nem mastigava.
Mastigava mesmo era os meus pensamentos e me apegava ao meu Deus, num sei se meu Deus era o Deus de todo mundo. Ele podia ter a mesma cara, apesar de nunca ter visto alguém falar da cara Deus. Talvez as pessoas tenham um Deus diferente, mas acho que o problema não é Deus, são as pessoas mesmo. Deus que é meu Deus nunca me mandou almoçar ali na despensa, perto do banheiro com o prato na mão e sem poder escolher o que eu queria comer. A culpa é das pessoas! Tinha até umas boazinhas, até simpáticas, mas nunca disseram nada e nunca almoçaram comigo.
Dia de domingo, às vezes almoçava lá, só, às vezes. Bom era comer em casa, pouco ou muito e sem muita escolha: era mais gostoso. A gente comia devagarinho e conversava muito, num tinha pressa, ninguém fazia cara feia, já eram éramos feios mesmo, mas éramos tão bonitos, principalmente almoçando. Tinha dia que a gente escolhia os locais para comer, às vezes era na cozinha, outras na sala assistindo o jornal, mas quando era dia de festa a gente juntava o que tinha e todo mundo almoçava era no quintal e quando faltava cadeira a gente improvisava. A casa era pequena e o quintal tinha mais espaço, depois a gente dançava e bebia. O ruim era ter que lembrar que no outro dia a gente tinha que comer apressada.
Duas mesas de madeira, madeira mesmo, mesa para casa grande. A casa não era tão grande, mas cinco vezes maior que a minha. Cada mesa tinha seis cadeiras, mas nunca almoçavam seis pessoas naquela casa. Eu que não contava, ficava na despensa, ali escondidinha e calada: só meus olhos conversavam.
Vi num livro de história quando estudava, estudei pouco, tive que trabalhar primeiro, que tinha umas Casas Grandes, no tempo que povo preto era chamado de escravo. Só lembrei da casa onde trabalhava, acho que a despensa era minha senzala. Aquele povo achava que eu tinha que comer com o prato na mão e eles com o prato na mesa. Acho que eles comiam mesmo eram as almas dos donos da Casa Grande.
Dona Preta, da minha corzinha, parece que tinha alma de dona de Casa Grande e achava que era branquinha, mas era mesmo é nojenta, não porque fosse suja, mas porque fazia nojenteza comigo. Ela é quem dizia que eu tinha que comer na despensa e também fazia a contabilidade da minha fome sem me consultar. Não me dava descanso e reclamava sem intervalos. Se as pessoas contam carneirinho para dormir, eu contava para me aguentar.
Era uma casa frequentada pelas crianças, era casa de vó e de vez em quando elas almoçam lá, brincavam comigo. Só achavam estranho eu almoçar com o prato na mão, na despensa, até me chamavam para almoçar com elas na mesa, nesta hora, todos ficavam calados e Dona Preta, além de calada franzia a cara, até parecia um buraco de merda.
Naquela casa, minha carteira de trabalhos nunca foi assinada, só vim saber o que era isso depois, não sabia dessas coisas de direitos trabalhistas não, só sabia era trabalhar. Dona Preta nunca falou disso para mim. Ela gostava era de acender velas de manhã e de noite, umas seis por dia, rezava seu terço, lia a bíblia e todo domingo, se preparava toda, escolhia a melhor roupa, passava batom, pó na cara para ficar mais branca e saia para igreja. Só faltava a missa quando estava doente, adoecia pouco.
Mas um dia cuspi na cara de Dona Preta e nunca mais tive que almoçar na despensa.
Por Alexandre Lucas. Pedagogo, integrante do Coletivo Camaradas e presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais do Crato/CE
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