Adão velho, antevendo a morte que o espreita há mais de novecentos anos, senta à beira do Rio Gion e contempla cansado o seu destino único: Atrás de si o paraíso abandonado há tantos e tantos anos, diante de si a vida que palpita e canta em todos os seus descendentes. O primogênito da humanidade esmiúça ,com detalhismo de cirurgião , a missão que lhe foi destinada: povoar o planeta. No espelho do Gion vê projetada, como numa seqüência de slides, esparsas quadras da sua existência, como um proto e felinniano filme. Vê a serpente insidiosa oferecendo a maçã à Eva e, de repente, o despejo do paraíso com anjos irados e espadas flamejantes; subitamente eclode a imagem brutal do primeiro homicídio: Abel imolado, numa antevisão do futuro do homem e Caim a pagar suas penas a leste do éden; o quarto e o quinto dias da criação se mesclam aos seus olhos numa apoteose de verde e de vida: flores, mares, árvores, peixes e flores…Os olhos de Adão brilham por entre a branca cabeleira e a alva barba revolta. As águas do Gion , como um telão descomunal, mostram, por fim, a imagem daquele oitavo dia do Gênesis, quando Deus, após o descanso do sétimo dia, fez a primeira anestesia e cirurgia : pôs Adão a dormir, dele tirou uma costela e dela fez brotar Eva., a sua companheira e antídoto da paradisíaca solidão. O velho curva-se sobre o próprio peso, como se tentasse mergulhar no Gion e voltar os ponteiros do relógio…
Aquele, sabe ele, foi o momento supremo de toda a criação, foi preciso que o Criador ensaiasse nos outros seis dias e descansasse no sétimo para conseguir sua obra prima: a Mulher. Hoje, ele percebe, no fim dos seus dias, que o mundo não existiria, não fôra aquela costela extirpada… A Eva se deve a transgressão primeira, aquela que nos tornou homens falíveis , volúveis e perecíveis. A expulsão do paraíso, episódio tão traumático na nossa história, nos tornou frágeis e inseguros, mas nos fez andar com nossos próprios pés, em busca de caminhos bons ou ruins, leves ou espinhosos, mas abertos por nós próprios. A Mulher foi quem nos possibilitou dizer: A raça humana tem um destino próprio, calcado por seus pés, escavado por suas mãos. Hoje ele sente que a vida no paraíso eterno seria de uma inconcebível chatice: Como conhecer a alegria e a felicidade, sem o contraponto da tristeza e angústia? Adão lembra também que foi no rosto de Eva que, pela primeira vez, viu o sorriso e a lágrima…Nunca o velho iria imaginar que, um dia muitos séculos depois, para ser lembrada ,a Mulher precisasse de um Dia, como se, senhora da vida e da beleza, seus não fossem todos os segundos…
A tela do Gion mostra a indiscritível imagem de Eva nua, no éden, por entre as flores, os pássaros , correndo de encontro ao vento… Adão esboça um sorriso amplo que lhe toma toda a face, enquanto, tranqüilamente, os olhos cerra e adormece…
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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